A caminho do BRICS

Por Pedro Paulo Rezende

A aproximação do Reino da Arábia Saudita com a República Islâmica do Irã, promovida pela República Popular da China, representa muito mais que um golpe na influência do Departamento de Estado norte-americano no Oriente Médio e no Golfo Pérsico. É o primeiro passo de uma nova ordem multipolar na qual o dólar, emitido sem qualquer lastro pelo Tesouro dos Estados Unidos da América, deixará de ser a única moeda mundial. Os líderes das duas nações, o príncipe herdeiro Mohamed bin Salman e o aiatolá Ali Khamenei, manifestaram, durante o ano passado, interesse de participarem do BRICS, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (leia mais aqui) e o acordo firmado em Beijing, no dia 10 de março, é o primeiro passo neste sentido.

O tratado foi firmado pelo representante do Reino Saudita, ministro de Estado Musaad bin Mohamed Al-Aiban, e pelo secretário do Conselho de Segurança Nacional do Irã, Almirante Ali Shamkhani. O diretor do Escritório de Assuntos Estrangeiros do Partido Comunista Chinês, Wang Yi, serviu como intermediário. Os resultados práticos vieram logo depois. No dia 15 de março, o Banco de Exportação-Importação da China (China EximBank) firmou um empréstimo em yuan a favor do Banco Nacional Saudita dentro da iniciativa Uma Estrada e um Cinturão (Belt and Road Initiative — BRI), também conhecida como Nova Rota da Seda.

No ano passado, o Irã e a China assinaram um acordo comercial no valor de até US$ 400 bilhões em investimentos chineses ao longo de 25 anos, em troca de um fornecimento constante de petróleo iraniano. Com isto, Teerã quebrou seu isolamento imposto por sanções internacionais. Os efeitos foram visíveis: o país chegou ao lugar de nona economia global, ultrapassando o Brasil. O líder supremo iraniano, o aiatolá Ali Khamenei, disse, no ano passado, qu o poder geopolítico se deslocaria para o oriente:

— A Ásia se tornará o centro do conhecimento, o centro da economia, bem como o centro do poder político e o centro do poder militar — afirmou.

Garrote econômico

O SWIFT foi criado por norte-americanos e europeus em 1973 para substituir as comunicações por telex e tem sua sede em Bruxelas, na Bélgica. É um serviço de telecomunicações integrado por computadores que viabiliza o pagamento e a transferência de recursos entre empresas de diferentes países. Atualmente, é usado por mais de 11 mil bancos em 200 países para intermediar de forma padronizada informações sobre transações financeiras. O grande problema, é que o sistema é vulnerável às sanções decretadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

Cuba, Irã e Venezuela são bons exemplos: estão isoladas dos sistemas de pagamentos internacionais e têm dificuldades, inclusive, para adquirir alimentos e insumos médicos para suas populações, incluindo equipamentos de uso hospitalar e substâncias químicas para a produção de remédios. No caso venezuelano, as sanções são mais pesadas. Praticamente, a totalidade de suas reservas monetárias, inclusive em ouro, está embargada. A população do país pagou um preço pesado, até que o governo venezuelano conseguisse superar os obstáculos com o apoio financeiro da República Popular da China, da tecnologia petrolífera da República Islâmica do Irã e do suporte militar da Federação Russa.

É preciso ressaltar que a República Popular da China e a Federação Russa já trabalham em um caminho alternativo ao SWIFT (sigla em inglês de Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e já emitem moedas virtuais lastreadas em ouro, as chamadas CBDC — sigla em inglês para Moeda Digital do Banco Central.(leia mais aqui)

É óbvio que o bloco atraia o interesse de países que precisam de apoio financeiro e político para crescer. Já se manifestaram neste sentido Arábia Saudita, Argentina, Irã e Turquia. Egito e Indonésia também olham a ideia com interesse. Em um quadro onde a ordem unipolar impõe sua vontade, o BRICS serve como farol de liberdade econômica. (leia mais aqui)

O Grande Jogo

A China precisa de energia para fazer crescer sua economia, garantir a estabilidade interna e alimentar sua ascensão como potência global, mas o acordo Arábia Saudita-Irã vai muito além da mera garantia de fornecimentos de petróleo e gás. O país não sofre ameaças de embargo energético. A Rússia, principal provedor de Beijing, manteve o ritmo de seus suprimentos, apesar da Operação Especial na Ucrânia. A importância do Golfo Pérsico no planejamento estratégico de Beijing vai muito mais além: o Partido Comunista Chinês e o presidente Xi Jinping apostam na ampliação de mercados e em uma política multipolar e a Arábia Saudita e o Irã são imprescindíveis como entrepostos nas rotas entre Ásia, Europa e África. Também são peças importantes no grande jogo geopolítico entre Oriente e Ocidente.

A expressão Grande Jogo foi cunhada no Século XIX, quando Reino Unido e o Império Russo disputavam o coração da Ásia, principalmente o Afeganistão e o Tibete. Hoje, algo semelhante ocorre no Golfo Pérsico. O Ocidente apostou na Arábia Saudita, peça indispensável para garantir a credibilidade do dólar como moeda internacional depois que o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, em 15 de agosto de 1971, pôs um fim ao acordo de Bretton Woods (leia mais aqui) e determinou que a moeda estadunidense não fosse mais lastreada em ouro.

A decisão trouxe grande incerteza ao mercado financeiro, até que o rei saudita Faisal bin Abdulaziz afirmou que as vendas de petróleo do seu país só seriam pagas em dólar. A decisão foi estendida aos sócios da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), o que garantiu credibilidade à moeda norte-americana.

Uma revolução no caminho

O Ocidente manteve sua influência no Império do Irã até a Revolução Islâmica. A derrubada do Xá Reza Pahlevi, em fevereiro de 1979, mudou o quadro, com o fim da influência dos Estados Unidos junto a Teerã. A ocupação da embaixada americana por estudantes iranianos, em novembro, com a consequente prisão de diplomatas pelos radicais, marcou o ponto mais baixo na relação entre a República Islâmica e Washington. Por isto, não houve surpresa quando o presidente iraquiano Saddam Hussein, de tendência laica, recebeu apoio entusiástico dos Estados Unidos e da Europa ao decidir invadir o Irã. Era uma oportunidade para derrotar os aiatolás e os governos ocidentais chegaram a fornecer armas químicas a Bagdá. O conflito terminou em 1988, às vésperas da Invasão do Kuwait por forças iraquianas. (Leia mais aqui)

 Ao longo dos anos, as relações entre os Estados Unidos e o Irã só pioraram. O governo dos aiatolás colocou-se na posição de defensor da população xiita, minoritária no Irã, em contraponto ao esforço saudita de expandir o wahabismo, visão radical do grupo sunita, majoritário. Teerã também manifestou sua posição de transformar Israel em um país multiétnico, o que foi visto pelo Ocidente como uma tentativa de dar um fim violento ao Estado judeu.

Esta dicotomia foi bem usada pela direita israelense. Em primeiro lugar, para lançar sombras sobre o programa nuclear iraniano. Um decreto religioso emitido pelo aiatolá Ali Khamenei proíbe o país de possuir armas de destruição em massa. O documento lembra o emprego de artefatos químicos contra as tropas do Irã que resistiram à agressão iraquiana e coloca a questão moral acima do poder de dissuasão (Leia mais aqui). Apesar disto, líderes como Benjamin Netanyahu afirmam que o programa ameaça a sobrevivência do povo judeu. Obviamente, os que defendem esta tese esquecem que Israel é a única potência militar atômica do Oriente Médio.

Embargo

A questão foi levada à Organização das Nações Unidas (ONU) que decretou um embargo ao programa iraniano. Nunca se comprovou qualquer acusação de que Teerã perseguisse enriquecimento de urânio em pureza capaz de alimentar um artefato nuclear, mas a pressão continuou. Em 2014, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, escreveu uma carta ao presidente brasileiro Luíz Inácio Lula da Silva na qual solicitava a intermediação brasileira para um acordo. Junto com o presidente turco, Recep Erdogan, conseguiram um consenso, mas a secretária de Estado Hillary Clinton interveio e impôs a visão israelense.

Um ano depois, sob a orientação norte-americana, um acordo foi firmado em Teerã no formato quatro mais um (Estados Unidos, França, Reino Unido, países com armas nucleares, e Alemanha). Batizado de Plano de Ação Conjunto Global (em inglês Joint Comprehensive Plan of Action — JCPOA) curiosamente, continha exigências menores do que as previstas no documento anterior a serem cumpridas pelo Irã.

Os Estados Unidos se retiraram do JCPOA em 2018, depois que Donald Trump, extremamente ligado a Benjamin Netanyahu, assumiu a Casa Branca. O mandatário estadunidense ainda propôs um acordo de paz entre Israel e a Autoridade Palestina endossado pelos Emirados Árabes Unidos e pelo Bahrein, o chamado Acordo Abrâmico. O Departamento de Estado tentou envolver a Arábia Saudita, que se manteve afastada do tratado, que retirava o acesso de toda a margem do Rio Jordão aos palestinos. (Leia mais aqui)

Manipulação

Os Estados Unidos souberam explorar a rivalidade entre sunitas e xiitas para manipular a Arábia Saudita contra o Irã. O apoio dado por Teerã no Iêmen aos rebeldes Houthis serviu, ainda mais, para ampliar o fosso entre os dois países. Durante sua visita à Arábia Saudita em julho passado, o presidente dos EUA, Joe Biden, disse:

— Não vamos nos afastar e deixar um vácuo para ser preenchido pela China, Rússia ou Irã”.

Simultaneamente, rejeitou pedidos do país para equipamentos militares de ponta, principalmente o fornecimento de caças de 5ª geração Lockheed-Martin F-35.

Apesar disto, a China lançou inúmeras iniciativas de cooperação econômica com Riad. O país também se aproximou da Federação Russa, depois de décadas como ponta de lança dos interesses ocidentais no Golfo Pérsico. Muitos no Golfo veem o desenvolvimento da guerra na Ucrânia como uma aventura norte-americana desnecessária e perigosa, e acreditam que algumas das reivindicações territoriais do presidente russo Vladimir Putin sobre a Ucrânia são lógicas.

Aposta

A Arábia Saudita aposta no futuro pacífico da energia nuclear e Beijing é uma fonte segura e sem restrições de tecnologia, ao contrário dos países da União Europeia e dos Estados Unidos. Em contraponto, depois da visita do presidente da China a Riad no ano passado, o Ministério das Relações Exteriores da China alardeou um projeto de infraestrutura em particular:

— A China aprofundará a cooperação industrial e de infraestrutura com a Arábia Saudita e promoverá o desenvolvimento do Parque Industrial China-Arábia Saudita em Jizan.

O projeto integra a iniciativa BRI e reserva um enorme investimento em torno do antigo porto do Mar Vermelho, atualmente o terceiro maior da Arábia Saudita. Jizan fica perto da fronteira com o Iêmen, cenário de uma sangrenta guerra civil e batalha por procuração entre Riad e Teerã desde 2014, provocando o que a ONU descreve como a pior crise humanitária do mundo. Significativamente desde a visita de Xi Jinping, os ataques episódicos dos rebeldes Houthi, apoiados pelo Irã, diminuíram.

Um cessar-fogo, antes inviável no Iêmen, parece que pode evoluir para negociações de paz, mais uma indicação do potencial da influência da China na região. Beijing está perfeitamente ciente do que uma guerra contínua sobre o Golfo Pérsico pode custar caro a seus interesses comerciais – outra razão pela qual uma reaproximação Arábia-Irã faz sentido para Xi Jinping.