Terror indiscriminado

Por Pedro Paulo Rezende

A direita israelense e o Hamas são os dois lados de uma mesma moeda. O terrorismo de Estado contra o terrorismo religioso. Não há bons e maus neste caso. Todos são bandidos. Não há justificativa para ações deliberadas contra a população civil, seja em ataques a raves em kibutz ou em bombardeios maciços e indiscriminados contra a Faixa de Gaza. O objetivo dos dois lados é um só: a permanência do caos ao impedir um acordo de paz com a formação de um Estado palestino.

Para os radicais judeus, a ideia é incorporar a totalidade da Cisjordânia, que, desde 1996, deveria servir de alicerce para um Estado palestino. A região está fora da área de influência do Hamas, mas colonos judeus protegidos por militares das Forças de Defesa e policiais de Israel assassinam palestinos, destroem olivais, concretam poços e destroem propriedades, inclusive em aldeias cristãs.

Em Gaza, apesar dos inúmeros recursos tecnológicos a sua disposição, Israel, desde 2009, usa apenas uma tática contra os militantes do Hamas, que não possuem armas antiaéreas efetivas: o bombardeio indiscriminado da área urbana pela Força Aérea de Israel inclusive com armas proibidas como bombas incendiárias de fósforo branco, aliado ao total isolamento da região. A cidade já foi aplainada cinco vezes. Uma muralha de concreto com a altura de oito metros cerca toda a fronteira para impedir o fornecimento de material de construção e, até mesmo, de alimentos e comida. Oitenta por cento da população, de 2,3 milhões, não têm trabalho e o fornecimento de água e de energia é limitado. É obvio que esta receita apenas amplia o ódio e o ressentimento dos palestinos contra o Estado judeu [1].

A alternativa definitiva e correta seria a ocupação de Gaza por forças terrestres israelenses e a entrega do território à Autoridade Palestina, mas os governos de direita, populistas por natureza, preferiram uma alternativa de baixo risco político. Em lugar de arriscar a vida dos seus soldados optaram pelo terrorismo de Estado punindo civis. A questão é que, hoje, a tarefa de eliminar o Hamas é imensamente mais difícil do que em 2009. O braço militar do movimento tem 40 mil homens bem treinados e equipados. Os bombardeios da Força Aérea de Israel, ao contrário do que possa parecer, vão dificultar a situação. Escombros fornecem ótimos esconderijos e dificultam a localização das tropas invasoras.

Nada disto ocorreria se a Força Aérea de Israel, em lugar de disparar 6 mil bombas (total usado entre os dias 7 e 14 de outubro), usasse sistemas de precisão. Em quatro ocasiões, entre 2002 e 2004, líderes do Hamas foram eliminados com pouquíssimas baixas humanas por mísseis Hellfire, de fabricação estadunidense, lançados por helicópteros de ataque AH-64. Hoje, outros equipamentos extremamente precisos, como munições vagantes (ou drones assassinos) estão disponíveis no arsenal do Estado judeu. Ou seja, há tecnologia para atuar cirurgicamente. (leia mais aqui)

Simbiose entre extremos

A verdade é que o Hamas é uma invenção do primeiro-ministro israelense Menachem Begin, um nacionalista linha-dura que participou do grupo terrorista Irgun e planejou o ataque ao Hotel Rei Davi, que abrigava a administração militar do Mandato Britânico na Palestina. A ação, realizada em 22 de julho de 1946, causou a morte de 91 pessoas (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 de outras nacionalidades) e ferimentos graves em outras 45 pessoas. Avesso a qualquer contato com a OLP, ele decidiu que precisava criar um contraponto à liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o partido Fatah, de caráter secular e comandados por Yasser Arafat. Para isto, estabeleceu um fundo para ser distribuído para grupos religiosos islâmicos beneficentes que serviam de fachada para organizações políticas extremistas que, inclusive, negavam o direito de Israel existir. A missão coube ao então governador militar de Gaza, general de brigada Yitzhak Segev, que revelou a história em uma entrevista ao jornal estadunidense New York Times.

Ao final de 1987, o xeque Ahmed Yassin criou o grupo Hamas (fervor em árabe). Ele era um líder atípico. Tetraplégico e praticamente cego se opôs a qualquer negociação de paz com Israel, em contraponto a Arafat que, em 1988, deu os primeiros passos para tentar solucionar o conflito ao solicitar que a Noruega mediasse as conversações em Oslo. Na época, o primeiro-ministro de Israel era Yitzhak Shamir, do Partido Likud, que integrou o Grupo Stern, responsável pelo massacre de aldeias árabes, como Deir Yassim, em 1948.

Os israelenses enfrentavam um levante na Cisjordânia e em Gaza, o que ficou conhecido como Primeira Intifada. Usando técnicas de resistência dissimilar, jovens palestinos lutavam com paus e pedras contra um dos mais poderosos complexos militares do mundo. A opinião pública mundial se voltou contra o Estado judeu e a posição de Shamir ficou insustentável. Nas eleições de 1992, os trabalhistas venceram a disputa pela maioria do Knesset (parlamento israelense) e Yitzhak Rabin, um militar e político extremamente competente, ganhou as eleições com a promessa de promover a paz com países árabes e com a OLP.

Esperança de justiça

Em absoluto segredo, as negociações ocorreram em Oslo com o apoio do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Depois de seis meses de conversações, em 13 de setembro de 1993, Yasser Arafat reconheceu o direito da existência de Israel e obteve em troca a aceitação do status da OLP como legítimo representante do povo palestino.

O primeiro acordo estabelecia a divisão da Cisjordânia em três áreas que seriam repassadas gradualmente a um regime autônomo, a Autoridade Palestina. O processo teve início em 4 de maio de 1994 com a saída de Israel da Faixa de Gaza e Jericó (Cisjordânia). Em julho, Yasser Arafat retornou aos territórios palestinos após 27 anos de exílio. Em função deste esforço diplomático, Rabin, Arafat e Shimon Peres, então ministro das Relações Exteriores israelense, ganharam o Prêmio Nobel da Paz.

Não havia nenhuma dúvida do compromisso do primeiro-ministro de Israel com uma solução pacífica para o conflito, o que atraiu o ódio dos sionistas radicais que queriam, simplesmente, incorporar a Cisjordânia e expulsar a população palestina. Rabin participava de um comício em defesa do processo de paz na Praça dos Reis de Israel, em Telavive, quando Yigal Amir, um radical nacionalista contrário a qualquer concessão territorial, assassinou-o com uma pistola semiautomática.

Com Rabin fora de cena, Ehud Barak, outro militar extremamente competente, assumiu o cargo de primeiro-ministro. As negociações prosseguiram com a total oposição do Hamas, que cometia seguidos atentados. Quase todas as reivindicações palestinas foram aceitas com exceção de dois pontos: o status de Jerusalém, reivindicado pelos dois lados como sede de governo, e o direito de retorno a seus locais de origem de 5,7 milhões de refugiados palestinos expulsos em 1948 — dados da Agência da ONU para Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês).

Barak, a exemplo de Rabin, era um homem de paz e fez uma concessão importante: aceitar Jerusalém como a capital dos dois países. Em relação ao direito de retorno como determinado pela Resolução 142 de 1948 da ONU, ele colocou na mesa uma possível compensação financeira aos refugiados que aceitassem se instalar nos territórios da Autoridade Palestina ou em outros países. Argumentava que o Estado judeu, que possui cerca de 9,3 milhões de habitantes (3 milhões de origem árabe) se descaracterizaria se aceitasse absorver um contingente habitacional tão grande quanto a própria população.[2]

Sabotagem

Enquanto se discutiam estes pontos, no dia 28 de setembro de 2000, o então líder da oposição, Ariel Sharon, do Partido Likud de direita, completamente avesso ao diálogo, invadiu a Mesquita de Al-Aqsa escoltado por policiais e soldados israelenses fortemente armados. Sharon marcou seu passado militar por ações de limpeza étnica (leia mais aqui). Mal comparando, seu ato equivalia a de um oficial nazista visitar o Muro das Lamentações. O resultado foi a Segunda Intifada, um levante palestino que durou cinco anos e resultou em 3.000 palestinos e 1.000 israelenses mortos.

Era uma clara sabotagem ao processo de Oslo. Sharon conseguiu vencer Barak e, a partir de 2002, interrompeu as conversações com Arafat e começou um processo de escalada na ocupação da Cisjordânia por meio de assentamentos judeus. Hoje, 350 mil cidadãos israelenses cercam as cidades que estão, teoricamente, sob o controle palestino. Para ampliar este processo, Sharon implantou muros e postos de controle entre elas, o que torna quase impossível a comunicação viária entre os centros urbanos.

A atuação do novo primeiro-ministro não se limitou a cortar o contato e a congelar o processo de paz. Em 2002, Sharon, em três ocasiões, determinou que as Forças de Defesa de Israel demolissem partes da Muqatta, complexo administrativo em Ramallah que servia de sede para a Autoridade Palestina e de moradia para Yasser Arafat. Isto visava tirar legitimidade do Fatah ao mesmo tempo em que empoderava o Hamas. O líder da OLP estava doente e passou o comando da Autoridade Palestina para Mahmoud Abbas.[3]

Em 2005, Sharon determinou a retirada de Gaza, mas impôs um forte isolamento na área. Um ano depois, nas únicas eleições realizadas entre os palestinos, o Hamas teve uma vitória expressiva em Gaza. Esvaziada pelas manobras de Israel, a Autoridade Palestina tentou impedir que o grupo rival assumisse o governo. O breve conflito civil explodiu em 2007 e deixou 300 mortos, a maioria membros do Fatah.

Apetite de grileiro

De lá para cá, a situação palestina piorou. Depois de um breve interregno, entre 2006 e 2009, quando um moderado, Ehud Olmert, governou Israel e tentou reabrir as negociações, a direita hidrófoba assumiu o controle do Knesset com a eleição de Benjamin “Bibi” Netanyahu [4], outro militar da reserva. De lá para cá, a colonização da Cisjordânia acelerou com sede de grilagem de terras e os incidentes se agravaram. Ele se aliou com grupos religiosos fundamentalistas judeus que defendem, inclusive, a expulsão palestina. O objetivo é inviabilizar a solução de dois estados proposta em 1948 e impor o domínio completo do Estado judeu sobre toda a população conquistada.

Apartheid

Graças ao apoio dos Estados Unidos, principalmente durante a administração de Donald Trump, ele conseguiu importantes vitórias diplomáticas junto a monarquias do Golfo no que foi batizado de Acordos de Abraão (leia mais aqui). Os termos redigidos (sem nenhuma participação dos palestinos) por Jared Kushner, genro do ex-presidente norte-americano, são escandalosos e incluem o fim do acesso da Cisjordânia independente à água do Rio Jordão entre outros absurdos.

Em troca, o governo estadunidense previu a concessão de duas áreas para produção agrícola junto ao Mar Vermelho (sem acesso direto à Gaza e sem água doce) e financiamentos de US$ 3,5 bilhões para gerar novos negócios para os palestinos. Pressionada pelos Estados Unidos, a Arábia Saudita era o próximo alvo da diplomacia israelense, mas o atentado do Hamas conseguiu frear a ofensiva diplomática. É importante ressaltar que a monarquia do Golfo iniciou, recentemente, uma aproximação com o Irã e aderiu ao BRICS+ (bloco formado inicialmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

A situação que, antes, era crítica apenas em Gaza, tende a piorar na Cisjordânia se não houver uma intervenção forte dos Estados Unidos, da União Europeia, da Rússia e da República Popular da China. A população vive em regime de apartheid, com poucos direitos e submetida a uma repressão excessiva.

A batalha que se avizinha nos domínios do Hamas certamente será vencida pelas Forças de Defesa de Israel, mas o preço pode ser caro. Sun Tsu afirmava que sempre deve se disponibilizar uma rota de saída para o inimigo. Homens desesperados que nada têm a perder tendem a ser adversários temíveis. Quem vive na Faixa de Gaza pode preferir a morte a uma vida sem sentido.

Israel promete tirar o grupo terrorista do poder. Resta saber se é um blefe que se desmanchará quando os corpos de soldados da IDF começarem a chegar em sacos pretos ou se a velha tática de bombardear civis de maneira aleatória terminará a prevalecer.

Foto: UNICEF/Mohammad Ajjour

NOTAS

[1] A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1947, decidiu pela partição das terras do Mandato da Palestina em um Estado judeu e um Estado palestino árabe.

[2] Somados os palestinos que moram em Gaza e na Cisjordânia aos árabes que possuem cidadania israelense, o quadro étnico está quase em equilíbrio: cerca de 6,3 milhões contra 6,5 milhões de judeus. No entanto, o índice de natalidade é maior na população de origem árabe do que na comunidade judaica.

[3] Arafat morreu em 2004 e está sepultado na Moukata.

[4] Netanyahu odeia o apelido de Bibi.