A militarização do Ártico

Por PEDRO PAULO REZENDE

O aquecimento global transformou o Ártico em uma região de grande atrativo. Este processo foi detectado pela Marinha da Federação Russa na primeira década do século 21. A passagem norte, que só era navegável sem o uso de navios quebra-gelos durante os meses de verão, passou a ficar aberta durante todo o ano. Um alerta foi encaminhado ao Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês). Paralelamente, o governo decidiu ampliar os levantamentos sobre recursos minerais na plataforma continental conforme previsto pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). A medida não fere a legislação internacional, uma vez que, ao contrário da Antártida, o Oceano Ártico pode ser explorado economicamente.

O primeiro passo na área diplomática foi resolver uma disputa com a Noruega, que perdurava por 40 anos. Os dois países firmaram um acordo dividindo salomonicamente uma área de 175 mil km² do Mar de Barents, uma superfície equivalente à metade do território do estado de Mato Grosso do Sul. Criou-se, de fato, uma zona de cooperação econômica ao norte da Península de Kola.

O tratado foi firmado, no dia 15 de setembro de 2010, na cidade russa de Murmansk pelo então presidente russo, Dmitry Medvedev, e por Jens Stoltenberg que ocupava o cargo de primeiro-ministro da Noruega — hoje, é o atual secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A disputa teve origem na década de 1970 na exploração dos recursos pesqueiros, mas levantamentos posteriores revelaram que o Ártico concentra 13% dos depósitos de petróleo remanescentes e 30% das reservas de gás mundiais, além de nódulos polimetálicos que incluem minerais raros e preciosos.

Tecnicamente, outros quatro países possuem interesses legítimos sobre a região: Canadá, Dinamarca, Estados Unidos e Islândia. A maior fatia pertence à Rússia, que também domina as rotas entre os países atlânticos e mediterrâneos e a Ásia. Em função disto, tomou medidas importantes para proteger seus interesses, com a criação de brigadas especiais para o ambiente polar. Equipamentos foram construídos especialmente, como uma versão do Pantsir M2 em chassis sobre lagartas biarticulado. O carro de combate T-80, equipado com um motor de turbina a gás, mais adequado a temperaturas negativas extremas, ganhou um novo ciclo de vida na versão T-80U, com blindagem reativa e novos equipamentos eletrônicos. Na área naval, passou a construir patrulheiros de grande porte com capacidade de romper bancos de gelo.

Os Estados Unidos, que não são signatários da Convenção das Nações Unidas sobre o direito do Mar, reforçaram a defesa do Alasca com o deslocamento de 150 aviões de caça F-35A. O Canadá, por sua vez, lançou uma nova classe de patrulheiros que terá cinco navios. Por falta de recursos suficientes econômicos e demográficos, os esforços da Dinamarca e da Islândia são menos expressivos. Os dois países dependeriam de um grande apoio da OTAN para defender seus interesses.

Reflexos no Brasil

Apesar do desmonte de empresas brasileiras promovido pela Operação Lava-Jato, o Brasil ainda detém tecnologia de levantamento e exploração de recursos petrolíferos, mas ainda não testadas em ambiente polar. Em 2014, o então vice-premiê Dmitry Rogozin, encarregado do setor de defesa e aeroespacial na Rússia, esteve no Brasil. Começou seu percurso pelo Rio de Janeiro, onde conheceu as instalações do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e os programas da Odebrecht de exploração de petróleo em águas profundas. De lá, seguiu para Brasília para se encontrar com o vice-presidente, Michel Temer, e o ministro da Defesa, Celso Amorim. Depois, foi para São José dos Campos para visitar as instalações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) da AVIBRAS e da MECTRON.

Na época, a imprensa deu pouca importância à visita ao Rio de Janeiro e preferiu enfatizar a negativa da Embraer de agendar uma visita para as autoridades russas a suas instalações. Rogozin estava sob sanção dos Estados Unidos e a empresa brasileira temia se indispor com o governo americano. No entanto, o vice-premiê ficou extremamente impressionado com a expertise brasileira na exploração da plataforma continental brasileira. Segundo uma fonte da chancelaria russa, entrevistada por mim na época, uma de suas prioridades era conhecer a tecnologia nacional ligada ao Pré-Sal.

Hoje, a capacidade econômica das empresas brasileiras está prejudicada, depois de seis anos de lawfare patrocinada pelo Departamento de Estado norte-americano contra as grandes empreiteiras atacadas pela Lava-Jato, mas bastaria um fluxo seguro de investimentos estrangeiros para se levantarem e exportar seu know how.

Direitos do mar

As pretensões do Canadá, da Dinamarca, da Islândia e da Rússia se embasam nas determinações da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) e respeitam o direito soberano dos países vizinhos. Esta posição é pacífica e consolidada desde a 3ª Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que se reuniu em Caracas a partir de dezembro de 1973, convocada pela Resolução 2750-C (XXV) da Assembleia-Geral da ONU de 1970. As discussões se encerraram em 1982, com a aprovação do texto final na cidade jamaicana de Montego Bay.

O tratado entrou em vigor em 16 de dezembro de 1994, doze meses após a data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ou adesão, em 16 de novembro de 1994, conforme o estabelecido no artigo 308, parágrafo 1º, do Tratado. Foram estabelecidas as seguintes regras:

a) Limite exterior do mar territorial em 12 milhas náuticas, definindo-o como uma zona marítima contígua ao território do Estado costeiro e sobre a qual se estende a sua soberania;

b) Estabelecimento de uma zona contígua de 12 milhas náuticas, dentro da qual o Estado costeiro pode exercer jurisdição com respeito a certas atividades como contrabando e imigração ilegal;

c) Uma zona econômica exclusiva (ZEE), tendo como limite externo uma linha a 200 milhas náuticas da costa e como limite interno a borda exterior do mar territorial, na qual o Estado costeiro tem soberania, no que respeita a exploração dos recursos naturais na água, no leito do mar e no seu subsolo;

d) Esta zona poderá ser ampliada até o limite da plataforma continental levantada por meios geofísicos.

Um estranho no ninho

Estas regras, no entanto, podem ser ameaçadas pelos Estados Unidos, um dos 26 países que não assinaram o tratado. Apesar de patrocinarem a 3ª Conferência sobre os Direitos do Mar, o Senado norte-americano não ratificou a CNUDM. Esta negativa, hoje, serve como justificativa para o que o Departamento de Estado define como missões de passagem pacífica que, em verdade, ultrapassam as normas internacionais e interferem nos direitos de outros países. Hoje, a República Popular da China é o alvo preferencial destas violações que não se limitam ao país asiático. A presença de navios da Marinha dos Estados Unidos a distâncias perigosas de plataformas brasileiras já foi denunciada ao Ministério da Defesa e ao Itamaraty.

Ao que tudo indica um consenso pacífico já foi forjado entre os países signatários da CNUDM interessados em explorar os recursos árticos. Resta saber qual será a reação estadunidense no futuro. Sabe-se que as missões de passagem pacífica e o não reconhecimento dos limites internacionais estabelecidos pelas Nações Unidas são um ponto comum das doutrinas do o atual presidente Donald Trump e do futuro chefe de Estado, Joe Biden.

Durante a gestão republicana, as autoridades norte-americanas não tiveram escrúpulos ao impor seu ponto de vista à revelia da legislação internacional. Embargos unilaterais (extremamente efetivos) foram impostos à Cuba, ao Irã e à Síria. Por meio de atos de chantagem — ameaçando impedir investimentos e vendas de companhias estrangeiras no território estadunidense — o Departamento de Estado executa uma agenda que desrespeita os direitos humanos e ameaça a vida de milhões de pessoas. Em plena pandemia de COVID19, empresas europeias e asiáticas de insumos e equipamentos médicos foram impedidas de exportar para as nações sob sanções. Neste ponto, espera-se um comportamento mais racional de Biden.

O futuro presidente dos Estados Unidos, no entanto, possui posições bem definidas no combate ao aquecimento global e já prometeu retornar ao Acordo de Paris, o que pode trazer dificuldades na exploração dos recursos econômicos do Ártico. Esta questão não consta da plataforma eleitoral e só será respondida depois de 20 de janeiro de 2021, data da posse de Biden na Casa Branca.