Muitas compras, pouca nacionalização

Por Pedro Paulo Rezende

Este ano, o Brasil pretende investir R$ 8,66 bilhões em material militar. O presidente Luíz Inácio Lula da Silva tem dois objetivos: pacificar politicamente as Forças Armadas infectadas pela ideologia de direita radical e usar os projetos para relançar a indústria bélica nacional com o emprego da Base Industrial de Defesa (BID), desidratada durante as gestões de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. O chefe de Estado encarregou o vice-presidente da República (e ministro da Indústria, Comércio e Desenvolvimento), Geraldo Alckmin, para comandar a revitalização da indústria bélica, que, nas décadas de 1970 e 1980, exportou grandes volumes de equipamento para a África, América Latina, Ásia e Oriente Médio.

No entanto, a maioria dos projetos atuais dos comandos da Marinha, Exército e Aeronáutica envolve compras diretas de empresas estrangeiras com pouco ou nenhum envolvimento de empresas nacionais. Para piorar, há atrasos claros na quase totalidade dos programas. As prioridades foram apresentadas a Lula em reunião com os comandantes da Marinha, almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen; do Exército, General de Exército Júlio Cesar de Arruda (substituído depois pelo general de exército Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva), e da Aeronáutica, tenente brigadeiro do ar Marcelo Kanitz Damasceno.

Caças desdentados

Ao se analisar os investimentos previstos, verifica-se que o Comando da Aeronáutica receberá R$ 2,4 bilhões neste ano. O programa do avião de combate F-X2, que envolve a aquisição de 40 caças SAAB F-39E/F Gripen, detém a parte do leão. Neste ano, serão recebidas cinco células, ao valor total de R$ 1,38 bilhão, mas duas delas deveriam ser entregues no ano passado.

Até o momento, apenas quatro aparelhos foram entregues ao Comando da Aeronáutica, o que não é um grande problema uma vez que só três pilotos estão capacitados a operar o avião. Há dificuldades de integração de sistemas indispensáveis, como o radar RAVEN e o IRST ( sensor passivo infravermelho de detecção de alvos) Skyward, ambos fabricados pela Leonardo da Itália. A campanha de homologação de operações de reabastecimento em voo (REVO) só terá início neste ano.

Mesmo assim, a Força Aérea Brasileira determinou que o modelo tem capacidade inicial operacional (IOC, na sigla em inglês) desde o ano passado, embora a Força Aérea Sueca afirme que os seus caças dos mesmo modelo só atingirão este nível em 2025. Por enquanto, os mísseis de defesa aérea selecionados ainda cumprem a etapa de certificação na Suécia e os aviões brasileiros estão restritos ao uso de canhão em qualquer interceptação que tiverem de realizar.

O grau de nacionalização, por enquanto, é pequeno. A montagem de componentes é feita na AKAER, em São Bernardo do Campo, a partir de insumos fornecidos diretamente pela fabricante sueca. A homologação dos subconjuntos não é realizada no Brasil e, depois de prontos, precisam retornar à matriz do fabricante em Linköping. Na proposta original, o Grupo IMBRA seria responsável por absorver a tecnologia de fabricação de materiais compostos, mas com a aquisição de 40% do capital da AKAER pela SAAB, a nacionalização deixou de ser perseguida.

KC-390

O ex-comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr, pretendia adquirir um segundo lote de 26 unidades em junho de 2022. Para isto, tentou reduzir a encomenda de aviões EMBRAER KC-390 Millenium, de 28 para 12 aparelhos, no exato momento em que o produto ganhava o mercado internacional com encomendas de Portugal, Hungria e Países Baixos. Depois de muita negociação, fechou o total em 19 aviões.

É importante ressaltar que o KC-390 é o segundo maior projeto militar nacional em termos de geração de empregos, apenas superado pelo Programa de Desenvolvimento de Submarinos, com amplo potencial para exportações. O avião atende integralmente os requisitos de informação emitidos pela Força Aérea Indiana para a aquisição de até 80 unidades e uma prova de apoio do governo brasileiro reforçaria a posição do produto na concorrência.

O total inicial de 28 aparelhos não é exotérico. É fruto de um planejamento sólido do Ministério da Defesa, realizado durante a gestão do embaixador Celso Amorim, para criar uma capacidade de transporte capaz de deslocar os efetivos do Comando de Operações Especiais (COpEsp) de Goiânia, onde está sediado, para qualquer ponto do território nacional. Outra função importante será o transporte de equipamentos dos dois grupos de Artilharia de Mísseis e Foguetes equipados com o sistema AVIBRAS ASTROS 2020 — localizados em Formosa, Goiás.

Apesar disto, a Força Aérea Brasileira (FAB) insistiu na redução do total de aviões encomendados e no ritmo de entregas. Neste ano, a FAB receberá apenas um KC-390 Millenium ao custo de R$ 307 milhões. Durante o encontro com Lula, o brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno tirou um coelho da cartola: a compra de um número não determinado de cargueiros leves Cessna 408, de fabricação americana, com recursos do Foreign Military Sales. Basicamente, servirão para abastecer os pelotões de fronteira da Amazônia.

A FAB encomendou estudos à EMBRAER para a construção de um transporte com capacidade superior ao aparelho da Cessna. O STOUT, sigla de Short Take Off Utility Transport (avião de transporte utilitário de decolagem curta), ficou sofisticado demais, com dois motores turboélices e dois motores elétricos, e demoraria para ficar pronto. Foi cancelado no ano passado.

Cabe aqui um parêntese: uma startup, a Desenvolvimento Aeronáutico (DESAER), fundada em 2017, desenvolveu uma alternativa nacional na mesma classe do Cessna 408, mas nunca recebeu atenção do Comando da Aeronáutica. O ATL-100, um bimotor turboélice para uso comercial e militar, com capacidade para 19 passageiros ou 2.500 kg de carga, nunca recebeu financiamento suficiente para sair do papel. O projeto tem uma vantagem sobre o aparelho estadunidense, uma rampa traseira, o que facilitaria embarques e desembarques de carga, mas foi atropelado pela necessidade urgente de suprir os pelotões de fronteira, uma velha reivindicação da força terrestre.

Em 2005, a FAB promoveu uma concorrência para substituir os DeHavilland Canada C-115 Buffalo. O avião selecionado foi o CASA 295, rebatizado de C-105 Amazonas no serviço brasileiro, que se mostrou pouco adaptado ao serviço amazônico. Desde então, o abastecimento das unidades do Exército na região é problemático.

Marinha

A Marinha busca ampliar a nacionalização de seus projetos. A maior prioridade é o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) — em cooperação com o Naval Group francês, que abrange quatro navios convencionais e um de propulsão nuclear —, seguida do projeto para a construção de quatro fragatas leves de Classe Tamandaré, de concepção alemã.

Apesar do atraso de componentes franceses em função da pandemia de COVID 19, de uma maneira geral, o Brasil está satisfeito com o nível de cooperação tecnológica envolvido no PROSUB, criado em 2008. O projeto contempla, além das embarcações, a construção de um complexo de infraestrutura industrial e de apoio à operação, que engloba os estaleiros, a Base Naval e a Unidade de Fabricação de Estruturas Metálicas (UFEM) no município de Itaguaí (RJ).

O programa já entregou o submarino S-40 Riachuelo à Marinha do Brasil. A segunda unidade, o S-41 Humaitá, iniciou seu período de testes em dezembro do ano passado e deve ser repassado ao setor operativo da Marinha até o final deste ano. As duas unidades restantes seguem em construção. As sessões da terceira unidade, o S-42 Tonelero, já foram unidas e o navio deve ser finalizado até o início de 2024. O lançamento do S-43 Angostura está previsto para o próximo ano. Para completar as unidades convencionais de propulsão diesel-elétrica, a Marinha vai investir R$ 613,9 milhões. Para completar a base naval de Itaguaí, foram reservados R$ 302,5 milhões.

A grande preocupação é a continuidade do programa depois de completadas as quatro unidades já contratadas.

Iperó e fragatas

O submarino de propulsão nuclear SN-10 Álvaro Alberto segue em bom ritmo. O Naval Group revisou os desenhos do casco preparados pelos engenheiros brasileiros. O Laboratório de Geração de Energia Nucleoelétrica (LABGENE), no Centro de Pesquisas de ARAMAR, no município paulista de Iperó, receberá investimentos da ordem de R$ 246,3 milhões para finalizar sistemas para o reator que servirá como protótipo em terra da planta projetada para a primeira embarcação nacional movida a energia atômica.

O reator também serve como protótipo para usinas nucleares de médio porte de uso civil para abastecer cidades de até 300 mil habitantes. A nacionalização vai do casco resistente dos submarinos à fabricação aos geradores de eletricidade e os motores elétricos.

O Programa Fragatas Classe Tamandaré visa a construção de quatro navios derivados do projeto MEKO 100, com previsão de entrega para o período entre 2025-2029 e é indispensável para a Marinha do Brasil. Atualmente, o país dispõe apenas de três fragatas (já tivemos dez), duas corvetas (perdemos três em menos de 10 anos) e três navios patrulha oceânicos. Adquirido pela Thyssenkrupp Marine Systems em 2020, o Estaleiro Brasil Sul foi ampliado e modernizado para a tarefa. A construção ainda se encontra em fase inicial, com o recebimento de equipamentos e de materiais para o começo do batimento da quilha. A ideia é partir dos atuais 20% de nacionalização para atingir até 60% dos componentes do navio.

Exército

O Comando do Exército começou o ano com vento em popa com a entrega das duas primeiras viaturas de combate blindadas de cavalaria (VBCCav) Leonardo Centauro II (leia mais aqui), no dia 30 de janeiro, em La Spezia — sede da OTO-Melara, construtora da torre. Os dois carros de combate sobre rodas foram contratados em dezembro passado junto ao Consórcio IVECO OTO-Melara (CIO), italiano e, 35 dias depois, já foram entregues ao chefe do Estado-Maior do Exército, general de exército Valério Stumpf Trindade. Nos próximos meses, passarão por testes de validação antes de serem embarcadas para o Brasil.

Formam o lote piloto de 92 unidades (que poderão chegar a 221), parte delas, a partir de 2027, a serem construídas em Sete Lagoas, Minas Gerais (casco e parte mecânica), e Juiz de Fora, onde a torre será fabricada pela IMBEL. Esta compra cobre, no entanto, apenas R$ 15 milhões dos investimentos de defesa para este ano. O contrato total, a ser encerrado em 2038, envolve R$ 650 milhões a preço de hoje a serem desembolsados ao longo de 16 anos.

A força terrestre ainda priorizou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), além dos programas Defesa Antiaérea, Defesa Cibernética, de Aviação, e o ASTROS 2020, com o financiamento de um foguete guiado de 150 km de alcance e a continuação do desenvolvimento do primeiro míssil de cruzeiro nacional, o AV-MTC, com 300 km de alcance.