A arte de redesenhar fronteiras

Por Pedro Paulo Rezende

A criatividade dos diplomatas do Departamento de Estado norte-americano pode ser comparada a dos melhores escritores de ficção. Impérios são destruídos, países recebem novas formatações e grupos étnicos rivais são unidos ou separados de acordo com a vontade de Washington. Os projetos, às vezes, funcionam, a dissolução da União Soviética em 15 países, em 26 de dezembro de 1991, é um dos exemplos de sucesso, mas, na maioria dos casos resultam em fracassos clamorosos, como no Iraque e na Síria. A moda não é de agora. O Panamá se separou da Colômbia em 1903 porque os Estados Unidos precisavam garantir uma ligação mais rápida e segura entre as costas do Atlântico e do Pacífico.

O presidente Theodore Roosevelt resolveu assumir e retomar as obras do canal proposto por Ferdinand de Lesseps (leia mais aqui). O governo colombiano negociava os termos de permissão do uso da área de maneira dura, para preservar os interesses nacionais. O chefe de Estado norte-americano não era chegado a sutilezas e estava disposto a tudo para concluir a obra. Para isto, acertou um acordo com um representante dos separatistas panamenhos, Manuel Amador Guerrero. As conversações clandestinas foram realizadas por funcionários do terceiro escalão do governo estadunidense em um quarto de hotel modesto em Washington.

A intervenção custou barato. A ferrovia que ligava Bogotá ao Panamá, de capital norte-americano, foi fechada para impedir o tráfego de tropas para conter a rebelião. Uma canhoneira da Marinha dos Estados Unidos fechou o acesso marítimo.

Cicatrizes

O que parecia um negócio lucrativo para o Panamá se transformou, aos poucos, em um caldeirão de ressentimentos. Uma área sob controle norte-americano, a Zona do Canal, cedida em caráter perpétuo, cortava o país, que não recebia uma retribuição financeira ou social adequada pelo uso do canal, que começou a funcionar em 1914. Era um pedaço dos Estados Unidos, com moeda própria (o Balboa) em meio a uma ilha de miséria latino-americana. Claro, uma pequena elite política e econômica panamenha se beneficiou e manteve sua aliança com Washington.

Com o início do conflito ideológico entre os blocos capitalista e socialista em 1946, a chamada Guerra Fria, movimentos sociais campesinos e urbanos começaram a explodir por toda a América Latina. Para contê-los, os departamentos de Estado e de Defesa dos Estados Unidos desenharam uma estratégia de contenção que incluía a violência institucional e a Zona do Canal era o local exato para abrigá-la. A área possuía um status especial que a colocava fora dos mecanismos de controle do Congresso, tornando-a ideal para abrigar projetos que pudessem melindrar a opinião pública. A Escola das Américas é o melhor exemplo disto (leia mais aqui).

Fundada em 1946, formou mais de 60 mil militares e policiais de 23 países, alguns deles de especial relevância pelos seus crimes contra a humanidade — como os generais Leopoldo Fortunato Galtieri, chefe da Junta Militar argentina que executou mais de 20 mil opositores e determinou a invasão do arquipélago das Falklands/Malvinas —, e Manuel Noriega, ditador panamenho aliado aos interesses da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Administração Antidrogas dos Estados Unidos.

Em 1961, seu objetivo oficial passou a ser o de ensinar a “formação de contrainsurgência anticomunista”. Para os policiais que frequentavam a escola, foram introduzidas no currículo disciplinas que ensinavam técnicas de interrogatório, tortura e assassinato que causaram milhares de mortes entre as décadas de 1960 e 1980.

Conflito

A Zona do Canal era território estadunidense. Toda a região era cercada e foi erguida uma espécie de cidade apenas para os funcionários. Passavam pelo canal mais de mil navios por dia, uma riqueza que se esvaia do país. Os protestos sempre existiram e tomaram corpo na década de 1950, com o protagonismo do movimento estudantil que conclamava o povo a invadir a área sob controle dos Estados Unidos para colocar a bandeira do Panamá. Era uma peça histórica, acompanhara todas as manifestações populares pela retomada do canal desde os anos 1940.

Em 9 de janeiro de janeiro de 1964, cerca de 200 alunos saíram de uma escola secundária, dispostos a fazer tremular a bandeira nacional no canal. A polícia abriu negociações e permitiu a ação, mas famílias estadunidenses que moravam interceptaram os estudantes e rasgaram o símbolo nacional panamenho, foi o suficiente para que centenas de cidadãos invadissem a área zona do canal em solidariedade aos estudantes. Eram mais de 30 mil pessoas empurrando as cercas do canal. A polícia reprimiu com violência e 22 foram mortos.

O sacrifício não foi em vão. A partir daquele dia começou uma grande campanha mundial exigindo que os Estados Unidos entregassem o canal ao Panamá, pois não havia sentido aquela política colonial e aquela ocupação do território. O então presidente do Panamá, Roberto Chiari, rompeu relações com os Estados Unidos exigindo abertura de negociações. A conversa foi longa e só no ano de 1977 o presidente Omar Torrijos conseguiu o sonhado acordo de retomada do canal, quando o presidente dos EUA era Jimmy Carter. O canal só seria devolvido no último dia do ano de 1999.

Torrijos, que enfrentou uma tentativa de golpe organizado pelos Estados Unidos em 1968, marcou sua atuação por pautas progressistas, nacionalizou serviços e priorizou pobres, índios e os negros na vida nacional. Morreu em circunstâncias suspeitas em um acidente de avião em 1981.

Oriente Médio

Esta criatividade pode ser bem medida pelas propostas elaboradas durante as invasões do Iraque e da Síria. Em 2002, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, já decidira invadir o Iraque, então governado por Saddam Hussein, sob a alegação de que o país mantinha um programa secreto de fabricação de armas de destruição em massa. Como parte de sua estratégia, lançou uma ofensiva de relações públicas que incluiu uma apresentação do então secretário de Estado, Collin Powell, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas onde mostrou fotos de pretensas instalações móveis de fabricação de armas químicas iraquianas.

A performance de Powell, general da reserva do Exército dos Estados Unidos, não foi convincente. Liderada pela França, a maioria dos integrantes do Conselho de Segurança não só questionou os dados apresentados pela delegação americana como também criticou a radicalização do discurso estadunidense. Apenas Austrália e Reino Unido se manifestaram a favor dos Estados Unidos.

Contrariando os interesses estadunidenses, a Organização para Proibição das Armas Químicas (OPAQ), órgão que integra o sistema da ONU, emitiu relatório em que reafirmava que o Iraque não dispunha de armas químicas e cumpria os termos do acordo, firmado em 1991, depois da Guerra do Golfo (leia mais aqui), no qual o Iraque abriu mão do seu arsenal de armas de destruição em massa montado, aliás, com apoio da República Federal da Alemanha e dos Estados Unidos, durante o conflito de Bagdá com a República Islâmica do Irã, ocorrido entre 1980 e 1988.

A invasão começou no dia 20 de março de 2003. Completamente sucateadas, as forças armadas iraquianas não conseguiram resistir ao ataque da coalizão comandada pelos Estados Unidos. A situação ficou ainda mais complicada com a decisão do Administrador do Iraque, Paul Bremer, tomada em maio, de dissolver as forças armadas iraquianas. De uma hora para outra, centenas de milhares de militares treinados ficaram sem nenhum meio de subsistência. O resultado foi uma explosão de violência e o surgimento de uma guerrilha organizada.

O Iraque é complexo etnicamente. A maioria da população é de origem xiita e, até a invasão, não tinha papel nas decisões políticas. O segundo maior grupo é de sunitas, que mantinham o controle do governo desde a independência do país. Os curdos formavam o terceiro maior contingente, restrito ao norte do território. Neste cadinho, ainda sobra espaço para cristãos caldeus, assírios e babilônicos e yazidis, que possuem uma religião própria.

Saddam mantinha o controle do país com mão firme. A chegada dos Estados Unidos desarticulou as forças de segurança e aumentou as pressões étnicas e aí surgiram sugestões do Departamento de Estado para resolver o problema destruindo um país grande, capaz de ameaçar os interesses norte-americanos no Golfo Pérsico, por meio da montagem de vários paisecos.

A primeira proposta era simples: criar um país para cada etnia principal. Poderíamos falar em tom de brincadeira, que seria um Xiistão, um Sunistão e um Curdistão. A segunda alternativa seguia o mesmo desenho básico, mas com uma variante: as áreas sunitas se incorporariam ao Reino Hashemita da Jordânia. Historicamente, o primeiro rei do Iraque, Faisal I bin Al-Hussein, integrava a casa Hashemita.

Por pressões turcas, o governo de Ancara não quer um Estado curdo em sua fronteira, a ideia caiu por terra, mas foi ressuscitada pelo senador Joe Biden, atual presidente dos EUA, que propôs a criação de três regiões autônomas em um sistema cantonal similar ao da Bósnia em 2007. Nas duas propostas, o controle das imensas reservas de petróleo do país ficariam por conta dos curdos, considerados como mai confiáveis.

Síria

A República Árabe Síria enfrenta, desde março de 2011, uma guerra civil que já deixou pelo menos 130 mil mortos, destruiu a infraestrutura do país e gerou uma crise humanitária regional. Mais de 2 milhões deixaram o país em busca de refúgio em nações vizinhas, aumentando as tensões entre os países vizinhos. Outros 4,25 milhões de sírios tiveram que se deslocar dentro do país devido aos combates. No início, a rebelião, localizada na cidade de Daraa, tinha um caráter pacífico, com a maioria sunita — que se considera prejudicada pelo governo alauíta — e a população em geral reivindicando mais democracia e liberdades individuais, inspirados pelas revoluções da chamada “Primavera Árabe” iniciadas no Egito e na Tunísia.

O que teve início como um projeto pacífico e democrático, explodiu em um choque étnico. Cabeças rolaram literalmente. A prática de degolar prisioneiros tornou-se uma arma política dos rebeldes. A maioria da população é sunita e se ressente com a administração da família Assad, que se apoia nas minorias cristã e xiita.

O alauísmo é uma variação mais liberal do movimento xiita mais propensa a respeitar os interesses das minorias. A Síria possui um passado cristão riquíssimo, ligado aos primórdios da religião. Era ponto obrigatório para Saulo e Tiago, entre outros pregadores que lançaram a base doutrinária do catolicismo, da ortodoxia e do protestantismo.

Os Estados Unidos intervieram ao lado dos rebeldes, colocando-se contra o interesse da população cristã. A partir daí, os criativos fazedores de mapas do Departamento de Estado entraram em ação. Na proposta, colocada oficialmente na mesa, os alauítas, que correspondem a 17% da população síria, receberiam um território exíguo unindo as cidades de Alepo e Tartus, onde a Rússia mantêm sua única base no Mediterrâneo. Os sunitas comandariam o sul junto à fronteira de Israel e os xiitas e curdos ficariam com a região norte.

União Soviética

O território acumulado pelo império da Rússia, também conhecido como Rússia Czarista, sempre atraiu o interesse das potências ocidentais. A Revolução Soviética de Outubro de 1917, que decretou o fim da monarquia, e o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, acirraram a criatividade do Departamento de Estado norte-americano e dos ministérios de negócios estrangeiros do Reino Unido, da República Francesa e do Império do Japão.

Surgiram planos de repartir o que sobrou do território do império em quatro ou cinco países e colônias. A União Soviética ficaria restrita à parte europeia e a Sibéria seria dividida entre os partidários do regime derrubado e os países aliados. Forças de ocupação tomaram Vladivostok e Arkhangelsk, de onde partiam colunas de suporte às unidades que combatiam os revolucionários. A intervenção — que contou com apoio americano, britânico, francês e japonês — durou dois anos e fracassou. A revolução se consolidou na maior parte das regiões da Rússia histórica.

Fronteiras movediças e escravatura

Os países bálticos e a Finlândia se tornaram independentes. A derrota dos impérios alemão e austro-húngaro permitiram o ressurgimento da Polônia, ausente do mapa da Europa desde 1772. Entre as áreas incorporadas ao país estava a Galícia, historicamente ligada à Ucrânia, na época, parte integrante dos domínios de Moscou. A ascensão do movimento Nacional Socialista na Alemanha (Nazismo), comandado por Adolf Hitler, que assumiu a chancelaria em 1933, permitiu mais uma oportunidade para redesenhar as fronteiras da Europa.

Em seu livro Mein Kampf (Minha luta), Hitler foi claro qual seria seu projeto para os países eslavos, incluindo a União Soviética. Ele acreditava que a atividade mais honrosa, depois da militar, era o trabalho agrícola. O destino do povo germânico (definido por ele como ariano) estaria no controle das raças inferiores por meio de colônias agrícolas onde os senhores da terra disporiam de escravos mantidos em total ignorância e com acesso apenas a rações de subsistência.

A União Soviética, na época, expandia sua indústria e agricultura. Sob a mão firme (e às vezes cruel) de Josef Stálin, a população saltou, entre 1920 e 1939, de 120 milhões de habitantes para 195 milhões graças a cobertura de saúde universal e ao fim do analfabetismo. A produção era inferior apenas a dos Estados Unidos. Obviamente, não havia espaço no continente europeu para duas ideologias tão diversas.

No início de 1938, a Alemanha incorporou a Áustria. Em seguida, Hitler lançou suas ambições sobre a Checoslováquia. Para conter o expansionismo nazista, a União Soviética propôs uma aliança defensiva com a República Francesa, o Reino Unido, a Checoslováquia e a Polônia. A oferta foi recusada pelo governo polonês, que teria de dar passagem às unidades soviéticas.

Em uma forma de semiditadura, o general Rydz-Śmigły co-governava a Polônia com o presidente Józef Piłsudski. Hitler, além de firmar um pacto de não-agressão com os poloneses, prometeu entregar partes da Checoslováquia à Varsóvia. Ele também aliciou a Hungria.

Alheios a estes movimentos, os primeiros-ministros do Reino Unido, Neville Chamberlain, e da França, Édouard Daladier, firmaram um acordo de apaziguamento com o chanceler alemão em 29 de setembro de 1938. Pelo tratado, a Alemanha se contentaria com os Sudetos (norte da Checoslováquia), onde vivia uma população de origem alemã, e se comprometia a manter a independência do resto do país. O ditador da Itália, Benito Mussolini, oferecia as garantias de cumprimento do documento.

O presidente checo, Edvard Beneš, não foi consultado. Pouco tempo depois, Hitler ocupou a totalidade do país. Stálin propôs uma aliança com a França e o Reino Unido, mas a resposta foi lenta. Uma comitiva partiu de navio para discutir os possíveis termos de um acordo. A resposta alemã foi bem mais rápida. O ministro das Relações Exteriores, Joachim von Ribbentrop, embarcou em um avião e chegou a Moscou no dia 22 de agosto de 1938. No dia seguinte, os dois países firmaram um pacto de não-agressão. Para Stálin, o pacto foi uma maneira de ganhar tempo.

A União Soviética limitou-se a incorporar os territórios perdidos depois da Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ganhou liberdade de ação no restante do território polonês e na Europa Ocidental. No dia 1º de setembro de 1939, as forças alemãs iniciaram a invasão da Polônia. No dia 17, os soviéticos ocuparam a parte que lhe cabia na partilha.

Em 22 de junho de 1941, os nazistas ultrapassaram a fronteira e atacaram território soviético. Quatro anos mais tarde, completamente derrotado, Hitler cometeria suicídio em Berlim cercado pelas unidades de Stálin. As fronteiras retornaram aos limites do Império até a dissolução da União Soviética em 1991. Hoje, os diplomatas norte-americanos sonham com a desintegração da Rússia, uma ideia que não conta com o apoio da população do país, mas que é defendida por poucos políticos pró-ocidente, como Alexey Navalny (leia mais aqui).