O pacto pela paz sobreviverá na Antártida?

Por PEDRO PAULO REZENDE

A Antártida oferece grande potencial econômico em estoques pesqueiros, oportunidades de bioprospecção e hidrocarbonetos, com reservas potenciais entre 300 e 500 bilhões de toneladas de gás natural no continente e, potencialmente, 135 bilhões de toneladas de petróleo em águas oceânicas, o que começa a atiçar a cobiça internacional. O continente recebe proteção desde 1961, quando o Tratado Antártico foi firmado por 14 signatários.

Em 1959, Argentina, Austrália, Chile, França, Nova Zelândia, Noruega e Reino Unido propuseram a divisão do continente. Os Estados Unidos e a União Soviética foram fundamentais na intermediação do Tratado da Antártida, que congelou a questão da soberania. A política das duas superpotências reforçava o compromisso de usar a Antártida apenas para fins pacíficos e para o livre acesso à ciência, sem abandonar futuras pretensões territoriais.

Hoje, 54 países participam do acordo, inclusive o Brasil. Em 1991, depois de dois anos de negociações, o Protocolo de Madri adicionou camadas de garantias adicionais com a proibição da prática de mineração. O documento começou a valer em 1998 e seus efeitos se estendem até 2048, mas, por meio de lacunas nas estruturas de governança, os estados buscam impor interesses nacionais o que pode gerar um quadro similar ao que se verifica hoje no Ártico onde uma corrida militar já se instalou (leia mais aqui).

Com o fim da Guerra Fria, em 1992, a Federação Russa assumiu os compromissos firmados pela União Soviética. Como parte de sua nova política externa, Moscou abriu mão de qualquer reivindicação territorial futura sobre a Antártida e passou a se empenhar, ainda mais, na cooperação científica da região. Esta posição contrasta com a posição errática dos Estados Unidos que, durante as gestões republicanas, acena com a possibilidade de explorar os recursos do continente branco.

A última ameaça clara ocorreu na gestão de Donald Trump. Com a eleição de Joe Biden, Washington voltou a priorizar os interesses coletivos sobre os unilaterais, apoiando o tratado e reafirmando seu compromisso com as proibições da exploração de recursos minerais. Apesar disto, os Estados Unidos, agora, buscam uma presença física na região com a construção de novos quebra-gelos armados. Como se não bastasse, o Reino Unido começou a explorar as reservas petrolíferas das ilhas Falklands/Malvinas, o que coloca em risco o ecossistema antártico (leia mais aqui).

Conflito de interesses

Estabelecida em 27 de outubro de 1986, por iniciativa do Brasil e apoiada pela Argentina, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) foi criada por meio da Resolução 41/11, da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), com o intuito de promover a cooperação regional e a manutenção da paz e da segurança no entorno dos 24 países sul-americanos e da costa ocidental da África que aderiram a tal projeto. Esse fórum se propôs a ser o principal mecanismo de articulação, no Atlântico Sul (área compreendida entre o paralelo 16° N e a Antártica), em busca de uma maior cooperação regional para o desenvolvimento econômico e social, a proteção do meio ambiente, a conservação dos recursos vivos e não vivos e a segurança de toda a região, sob a perspectiva da integração multilateral, permeada pelo pano de fundo das iniciativas relacionadas à não proliferação de armas nucleares e de destruição em massa.

Apesar disto, submarinos nucleares de ataque britânicos (armados de mísseis de cruzeiro com ogivas atômicas frequentam) a região desde a Guerra das Falklands/Malvinas em 1982. O Reino Unido ainda mantém uma seção de quatro caças Typhoon em Porto Argentino/Port Stanley.

Ameaça à China

Na região do Pacífico, a Iniciativa AUKUS — firmada entre os governos da Austrália, do Reino Unido e dos Estados Unidos em 15 de setembro de 2021 (leia mais aqui) — é um passo concreto rumo ao fim da Antártida como uma zona de paz e cooperação. A ideia do acordo é pressionar a República Popular da China ameaçando a liberdade de navegação nos mares da China e do Japão/Sul, onde se concentra 30% do tráfego marítimo internacional. A estratégia escolhida prevê a realização de patrulhas regulares de submarinos de ataque nucleares embasados em território australiano. Este projeto ainda é embrionário, mas deve estar concluído até 2040, uma vez que o território australiano não dispõe de instalações capazes de atender as necessidades logísticas e de manutenção de embarcações com propulsão atômica.

Para garantir seus interesses, a República Popular da China e a República da China (Taiwan) reivindicam, desde 1945, o retorno de áreas cedidas nesta região por tratados desiguais firmados com potências coloniais (França, Japão e Reino Unido) durante o século 19. A geografia também foi ingrata com a parte continental das duas Chinas. Um cinturão de ilhas — conhecido pelos estrategistas chineses como “cinturão de pérolas” — cerca as saídas dos mares da China e Japão/Sul, o que levou o regime socialista encabeçado por Beijing a construir ilhas sobre recifes não habitados e fora da cobertura da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar para romper o bloqueio.

Os interesses da República Popular da China vão além da costa asiática. Parte de sua logística depende de superpetroleiros que necessitam costear a África e a América do Sul. Os cabos Horn, no Chile, e da Boa Esperança, na África do Sul, são parte importante destas rotas alternativas. Por esta razão, Beijing vinculou as regiões polares meridionais à iniciativa da Nova Rota da Seda. A presença de submarinos nucleares de ataque australianos, britânicos e estadunidenses na região, em um futuro próximo, obrigaria Beijing a garantir sua livre passagem perto do litoral antártico, o que criaria riscos de conflito para a região.

O que pode mudar em 2048? Como partes interessadas, com direito a voto na governança continental, as partes consultivas do tratado podem decidir se mantêm seu protocolo ambiental e continuam a proibir a mineração e a militarização.

Com a eleição de Joe Biden, porém, os EUA voltaram a priorizar os interesses coletivos sobre os unilaterais, apoiando o tratado e reafirmando seu compromisso com as proibições da exploração de recursos minerais. A verdade é que o Tratado da Antártida é um instrumento frágil para garantir a preservação de um ecossistema único que interfere — junto com a Floresta Amazônica e a Cordilheira dos Andes — na formação do complexo climático global. No futuro, a iniciativa AUKUS e a sede por recursos energéticos podem atropelar a intenção pacífica e de pesquisa científica do acordo de 1961. O grande problema é que romper o status quo é um passo certo no caminho do caos climático global. O risco para a humanidade é alto. Furacões, incêndios florestais e prolongadas estiagens são cada vez mais frequentes na medida em que o planeta aquece, afetando todos os continentes.

Em suma, o ano de 2048 pode parecer uma data remota, mas interesses conflitantes podem acelerar o fim do Tratado da Antártida com consequências desastrosas em nível global. Vários fatores contribuem para isto e o que se espera é que os países signatários recuperem o bom senso para não agravar a situação.