Israel: se você olhar para o abismo por muito tempo, o abismo olha para você

Por Arthur Nadú Rangel

REUTERS/Oren Alon
REUTERS/Oren Alon

Nietzsche ao cunhar tal afirmação tinha em mente a metáfora do perigo de se perder dentro de um estudo ou um objetivo. A metáfora do “abismo” simboliza uma situação ou questão complexa, profunda ou obscura que, ao ser examinada por muito tempo e com muita intensidade, pode acabar afetando quem se sujeita. Neste sentido, podemos estender tal afirmação não apenas ao campo de observação, mas também a todas as coisas a que, quando ficamos muito tempo sujeitos, passamos a sermos afetados por elas; seja por um hobby, pela bebida ou por maus hábitos.

            Dentro deste fato, observamos que não é preciso um sujeito humano para que as influências ruins afetem o cotidiano e sua forma de agir. O mau hábito não é apenas do indivíduo, mas pode ser também de um grupo social, uma empresa, uma família ou mesmo de toda uma sociedade…

            Israel tem sofrido com este destino. Não o povo, não sua religião, mas sim seu campo político e diplomático que tem insistido no mau hábito, de forma que ele tem se tornado parte inerente de sua estrutura. Aqui cabe uma breve observação, a forma deturpada de fazer as coisas não deslegitima a sociedade israelense. Israel e seu povo merecem e devem exercer o direito de ser uma nação soberana e independente, de maneira pariforme aos habitantes seculares da região, os palestinos, que tem direito igual. Entretanto, décadas de guerras, problemas políticos e uma influência nada positiva dos EUA na política interna do país, corromperam a política interna, levando a um vórtice de atos que, aos poucos, levaram  Israel para o abismo metafórico.

            O primeiro ponto que observamos é sobre a reciprocidade da maldade. Poucos povos na história ocidental foram perseguidos como os judeus. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento de Eichmann, observou que pelo hábito a maldade acaba por se tornar um elemento comum do dia a dia, quando praticada de forma que despersonaliza o oponente, o reduzindo a números, estatísticas ou elementos não materiais. Esta banalidade de Arendt mostra que qualquer sujeito, ao colocar dentro de si os preceitos obscuros da maldade cotidiana, pode assumir em si a maior das nequícias e não perceber o fato. O sujeito que se limita a seguir ordens e a cumprir seu papel na máquina administrativa, sem questionar a natureza criminosa e desumana de suas tarefas, traz para dentro da sociedade a chamada “banalidade do mal”.

            Observamos que, pela prática comum e reiterada de atitudes desumanas, o absurdo não mais espanta, não mais chama a atenção, apenas acontece e não prestamos mais detalhes à suas consequências. Observamos a excursão de “pacificação” no campo de refugiados de Jenin na Cisjordânia no dia 03 de julho deste ano, que resultou em quase uma dúzia de mortos e por volta de uma centena de feridos. Quem eram os mortos? Não importa, uma vez que não eram israelenses. Quem era os feridos? Também não importa, ainda que exista uma dezena de crianças entre eles. Algum inimigo do Estado de Israel foi morto? Também não importa. O resultado buscado é único: causar o medo e ensinar aos não israelenses que ali vivem (em condições semelhantes a um campo de concentração) que não devem se comportar mal aos olhos do governo de Israel.

UNRWA/Tareq Shalash

            O segundo ponto é quando esta violência acaba por se espalhar para outros campos da vida pública. Não está apenas nas forças de segurança: agora também se apresentam como via política para resolver os conflitos internos. A outra visão de mundo, o outro político não está mais dentro de um conceito Schmittiano de amigo x inimigo, onde o adversário político deve ser vencido pelas ferramentas legais, mas sim como o inimigo não político – este que deva ser vencido por qualquer meio. É a limitação do debate interno, onde outras formas de pensamento devem ser limitadas, a legalidade deve ser submetida à ideologia política do grupo dominante, sob o pretexto da legitimidade obtida nas eleições. Tal afirmação poderia até ter algum sentido se existisse um sistema democrático exemplar para a escolha dos líderes e atores políticos, mas é de comum conhecimento que no Estado de Israel a quantidade de exceções sobre quem pode participar dos pleitos políticos e das votações é tão grande que acaba por concentrar o poder político na mão de pequenos grupos, muitas vezes de natureza extremistas.

            Em um país onde não existe uma lei superior, uma constituição, qualquer tentativa política de limitar a atuação das instituições políticas ou as colocar sob o controle de um soberano autoproclamado pode levar a piora dos hábitos ruins. Observamos a mudança oficializada pela reforma do judiciário no país, com a aprovação inicial no último dia 24 de julho de 2023, e levou a protestos generalizados da população, com centenas de milhares de cidadãos nas ruas, apoiados por ameaças de insubordinação militar e com constante medo de perseguição policial. Os protestos são grandes pois, mesmo com o governo afirmando que a reforma judicial fruto da vontade das urnas, a maioria dos moradores de Israel não podem votar, isto, somando aos que foram contra o governo eleito, que venceu a última eleição por uma pequena margem, acaba por formar uma maioria que busca deixar claro o medo e a contrariedade a tal medida antidemocrática.

            Assim, Israel passa a ter uma legislação política muito mais próxima da observada na Venezuela, em Cuba, na Polônia, Ucrania e Irã, do que a de países ocidentais europeus. Podemos até nos perguntar se os meios de comunicação passarão a colocar o país no mesmo grupo de “inimigos dos direitos humanos e da democracia ocidental”, onde também se encontram, por conveniência da narrativa americana, a China, a Coreia do Norte, o Irã, a Venezuela etc. O fato é que, em termos de limitações democráticas, poderes absolutos e violência contra grupos menorizados, poucos países do mundo seriam, neste momento, capazes de vencer Israel em números brutos.

REUTERS/Ammar Awad

            Os constantes protestos, as declarações dos demais poderes e dos militares israelenses mostram que o mal hábito ainda não chegou ao povo em geral, se concentrando, por enquanto, no campo político e nas relações internacionais. Enquanto a solução parte de uma não aceitação, por parte da população, das medidas antidemocráticas aplicadas pelos políticos de extrema direita no poder, também vai depender de um bom distanciamento dos EUA da política de relações internacionais de Israel, que, sob comando indireto dos americanos, apenas levou a mais conflitos e violência, longe de qualquer acordo de paz e aplicação justa dos direitos fundamentais.

            Por final, podemos observar o caminho que Israel tem traçado com base na experiência histórica europeia. A segunda guerra mundial mostra de forma clara o resultado de um país que a olhar tanto para o abismo acaba por não ser mais capaz se diferenciar dele.