A Ordem Mundial e o Paradoxo Europeu

Por RICARDO AMADESI COSTA

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo passou por uma série de transformações geopolíticas que moldaram a estrutura de poder global. A queda do Império Britânico e a ascensão dos Estados Unidos como potência dominante redefiniram as relações internacionais, consolidando a Doutrina Monroe e o conceito de Segurança Nacional como pilares da política externa americana. O Tratado do Rio e a formação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estabeleceram um bloco militar ocidental, Europa e Américas que, por décadas, confrontou diretamente o modelo soviético adotado pelos países do Pacto de Varsóvia durante a Guerra Fria.

Com o passar dos anos, a Europa Ocidental buscou sua própria identidade política e econômica, culminando na formação da União Europeia (UE). No entanto, esta integração veio acompanhada do avanço do neoliberalismo, impulsionado por líderes como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que promoveram uma agenda econômica centrada no mercado e na desregulamentação. A OTAN, por sua vez, tornou-se um instrumento estratégico dos interesses americanos, reforçando a influência dos EUA sobre o continente europeu e consolidando uma mentalidade voltada para o capital e a expansão econômica.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, marcou o início de um paradoxo europeu: enquanto a Europa Ocidental celebrava a vitória do liberalismo e do idealismo democrático, o Leste Europeu enfrentava desafios estruturais que exigiam um pragmatismo político e econômico. A expansão da OTAN e da União Europeia para territórios anteriormente sob a influência soviética gerou tensões que, em muitos casos, foram mal planejadas e executadas, resultando em conflitos internos e disputas culturais. O que era para ser uma expansão de meros interesses comerciais passou a ser cultural, político e de um padrão idealista democrático, chocando-se com o pragmatismo e tradições históricas do Leste Europeu.

A tentativa de integrar países da Iniciativa dos Três Mares, do Grupo de Visegrad, dos Bálcãs e do Báltico (leia mais aqui) à estrutura europeia revelou profundas contradições. A aceitação da Turquia na União Europeia tornou-se um dilema geopolítico, enquanto o conflito na Ucrânia expôs as fragilidades da estratégia ocidental. A guerra em curso não apenas redefine as fronteiras políticas, mas também prepara o terreno para um pós-conflito que pode ser ainda mais turbulento.

Este texto busca explorar essas dinâmicas, questionando o eurocentrismo e os desafios que emergem dessa nova configuração mundial. A Europa, que por séculos ditou os rumos da civilização ocidental, agora enfrenta um cenário de fragmentação e incerteza. Será que o modelo europeu conseguirá se adaptar às novas realidades geopolíticas, ou estamos diante do prelúdio de uma transformação ainda maior?

Pragmatismo versus idealismo

A Europa do século 21 continua dividida entre dois grandes modelos de pensamento: o idealismo ocidental, baseado na utopia globalista e na economia neoliberal, e o pragmatismo do Leste Europeu, enraizado na preservação da identidade nacional e na soberania econômica. Essa diferença não é apenas teórica, mas reflete um choque constante de valores que impacta a política, a economia e, até mesmo, os conflitos internacionais.

A Europa Ocidental, ao longo das últimas décadas, foi a principal promotora da ideia de uma ordem global integrada, onde fronteiras culturais e econômicas seriam eliminadas em favor de um sistema universal regido por instituições supranacionais. Essa utopia se manifestou em uma União Europeia como projeto de homogeneização política e econômica, buscando unir países distintos sob um conjunto único de regras e valores.

A promoção de pautas neoliberais, ambientais, climáticas e identitárias, onde a diversidade seria administrada por meio da aceitação de normas sociais padronizadas e o uso da OTAN como instrumento de influência, garantindo que países alinhados aos interesses ocidentais permanecessem dentro da lógica da integração global. Isto ocorreu especialmente após 2015, quando destinaram uma nova função à OTAN, incluindo o compromisso ambiental e pautas sobre o clima definindo metas, prazos e medidas coercitivas com relação ao não cumprimento de suas metas, acabaram por afrontar desafios internos e externos de vários países, especialmente os países emergentes.

Como consequência, esta visão idealista frequentemente ignorou as particularidades históricas e culturais de muitos países, criando uma desconexão entre a teoria globalista e a realidade geopolítica. A tentativa de impor um modelo único gerou tensões, resistências e crises internas, evidenciadas pela crescente rejeição ao neoliberalismo em algumas partes da Europa e pela fragmentação política dentro da União Europeia.

Assim, o pragmatismo do Leste Europeus acabou por rejeitar o Neoliberalismo.

O Leste Europeu

Os países do Leste Europeu, especialmente aqueles com forte legado soviético, seguiram um caminho diferente. Seus sistemas políticos e econômicos foram moldados por décadas de planejamento estatal e centralização econômica, tornando-os mais resistentes à ideia de integração irrestrita, possuindo características próprias de seu pragmatismo da região que incluem a valorização da identidade nacional e da soberania política, recusando interferências externas em seus sistemas internos. A rejeição às pautas neoliberais e identitárias, muitas vezes vistas como imposições culturais que não correspondem aos valores locais, além de valorizarem uma abordagem econômica menos dependente do mercado financeiro global, favorecendo políticas de autossuficiência e controle estatal.

Essa resistência fica evidente em países do Grupo de Visegrad, que frequentemente se opõem a certas diretrizes da União Europeia e defendem uma postura mais independente. Também observamos um forte pragmatismo em países da Iniciativa dos Três Mares, que buscam fortalecer infraestrutura e segurança sem depender completamente das políticas de Bruxelas.

Dessa forma, temos os elementos essências de falhas na Imposição de valores neoliberais e ao mesmo tempo, uma contradição nas decisões almejadas por grupos neoliberais nas decisões no Parlamento Europeu e nas decisões da OTAN, justamente com as lideranças e o conflito de interesses dos países do Leste Europeu.

Uma das principais contradições do modelo ocidental foi a tentativa de impor valores neoliberais por meio de sanções e pressões políticas contra países que não se alinham ao sistema. Isso se manifesta com práticas questionáveis e realizadas por meio de sanções econômicas contra governos que adotam modelos divergentes, muitas vezes sob o pretexto de promover a democracia, do combate a corrupção e dos direitos humanos diante a utópica visão dos valores ocidentais europeus. Aldous Huxley e o Admirável mundo novo na veia.

Não satisfeitos apenas com sanções e toda a instrumentalização plantada em organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Sistema SWIFT, o Banco Mundial e tantos outros ligados às Nações Unidas, o isolamento político de países que resistissem à globalização, retratando-os como “autoritários” ou “retrógrados”, mesmo quando possuíssem sistemas estáveis e funcionais dentro de suas próprias realidades, também compunham o pacote do “combo da democracy” um tanto que imposta, mas mascarada por uma liberdade restrita fundamentada a partir da “livre e espancada vontade”.

A crise na aceitação da Turquia e dos países dos Balcãs na União Europeia, devido a diferenças estruturais que não podem ser facilmente ajustadas ao modelo ocidental, acabam sendo um exemplo emblemático dessa contradição que pretendo aprofundar ainda mais.

A guerra na Ucrânia, além de ser um conflito geopolítico, também expôs essa falha. Enquanto o Ocidente insiste em promover um modelo de integração e alinhamento à UE e à OTAN, muitos países do Leste Europeu enxergam a situação sob uma ótica pragmática, questionando os interesses reais por trás dessa expansão.

Paradoxos Geopolíticos

A queda do Muro de Berlim em 1989 e o colapso da União Soviética em 1991 deveriam, em teoria, consolidar o modelo ocidental como dominante. No entanto, o que se viu foi um paradoxo geopolítico: enquanto a Europa Ocidental buscava expandir sua influência por meio da União Europeia e da OTAN, o Leste Europeu resistia à homogeneização e reafirmava suas identidades nacionais. Essa expansão gerou uma série de conflitos e contradições que marcaram o período pós-Guerra Fria.

Após a dissolução da URSS, houve promessas informais (devidamente registradas em vídeos) feitas por líderes ocidentais de que a OTAN não avançaria para o Leste, garantindo à Rússia que sua antiga esfera de influência não seria absorvida pelo bloco ocidental. No entanto, o que ocorreu foi exatamente o contrário. Em 1999, Polônia, República Tcheca e Hungria ingressam na OTAN. Já em 2004, observamos a expansão para os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) e para ex-integrantes do Pacto de Varsóvia (Romênia, Bulgária, Eslováquia). Não satisfeitos, entre os anos de 2009-2020, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte também se juntam à aliança.

Essa expansão gerou tensões com a Rússia, que viu a OTAN se aproximar de suas fronteiras, contrariando os acordos iniciais, mas vamos ao ponto de partida e dos ajustes geopolíticos iniciados pós-queda Muro de Berlim e no processo e ajustes da reconfiguração poder durante a dissolução da União Soviética. Em 1990, a OTAN começou a atuar diretamente em conflitos na ex-Iugoslávia, marcando uma mudança em sua postura.

A atuação da OTAN nos Bálcãs demonstrou que a aliança não era apenas um pacto defensivo, mas também um instrumento de intervenção militar em favor dos interesses ocidentais. Em 1992, tivemos a intervenção na Guerra da Bósnia, justificando a ação como uma missão de paz. Já em 1999, tivemos o bombardeio da Sérvia sem aprovação da ONU, alegando violações de direitos humanos em Kosovo. Já em 2008, vamos ter a polêmica questão envolvendo o Kosovo que declara independência com apoio ocidental, gerando tensões com a Sérvia e a Rússia.

A estratégia ocidental de promover mudanças políticas em países estratégicos se intensificou com as chamadas Revoluções Coloridas, que ocorreram em diversas partes do mundo:

•             No Sahel, movimentos políticos passaram a desestabilizar governos alinhados à França, levando à ascensão de novos blocos de poder.

•             Na Turquia, observamos as tentativas de afastar Erdogan do poder por meio de protestos e pressões internacionais.

•             Já no Egito, Líbano e Síria:, a Primavera Árabe foi usada como justificativa para intervenções ocidentais, muitas vezes favorecendo grupos alinhados aos interesses dos EUA.

No Oriente Médio, a OTAN e os países europeus participaram de conflitos que serviram aos interesses americanos:

•             Guerra do Golfo (1991 e 2003): Intervenção no Iraque sob justificativas de segurança global.

•             Síria: Apoio a grupos rebeldes contra o governo de Bashar al-Assad, gerando um conflito prolongado e buscando afastar os interesses regionais do Irã em estabelecer rotas de seu interesse ligando Teerã ao Mediterrâneo;

•             ISAF em Kosovo: Missão militar que reforçou a presença ocidental na região dos Bálcãs.

Embora a Europa Ocidental tenha seguido os EUA em diversas intervenções militares, há um paradoxo evidente entre ambos, uma vez que os Estados Unidos priorizam seus interesses estratégicos globais e o englobar daquilo que considera essencial a suas regras de Segurança Nacional, enquanto a Europa busca interesses voltados à própria estabilidade regional.

Instrumento americano

Nesse conflito de interesses, existe a OTAN, que se tornou um instrumento de influência norte-americana, muitas vezes colocando países europeus em conflitos que não necessariamente beneficiam suas agendas, mas que por tempo, serviu para atender interesses individuais de certos países europeus e que atualmente se chocam de maneira complexa e multifacetada. Exemplo disso é a questão da Ucrânia, onde fazendo parte dos interesses de países europeus e suas ambições com a utópica agenda Globalista, contribuiu e promoveu a instabilidade política com o Euromaidan e possibilitando um alinhamento dos interesses que acabaram provocando o conflito atual com a Rússia, e um desentendimento entre EUA e europeus, cada qual com agendas distintas e paradoxais.

Se voltarmos no tempo, lá no ano 2000, a Europa Ocidental promoveu sua agenda de transformação política e social em países estratégicos, especialmente no Leste Europeu e no Cáucaso. Essa estratégia, muitas vezes associada às Revoluções Coloridas, teve como objetivo a ocidentalização de governos e sociedades, buscando afastá-los da influência russa e aproximá-los dos valores europeus e da OTAN.

A primeira grande tentativa de mudança política ocorreu na Geórgia, com a Revolução das Rosas em 2003, constituído por movimento, apoiado por organizações ocidentais, levou à ascensão de Mikhail Saakashvili, um líder pró-Ocidente que buscou integrar a Geórgia à OTAN e à União Europeia. No entanto, essa transformação gerou tensões com a Rússia, culminando na Guerra Russo-Georgiana de 2008, onde Moscou interveio militarmente para impedir a consolidação da influência ocidental na região e a limpeza étnica da Ossétia do Sul.

Outros países também passaram por processos semelhantes:

•             Ucrânia (Revolução Laranja, 2004) – Mudança de governo alinhada ao Ocidente, gerando conflitos internos e resistência russa.

•             Quirguistão (Revolução das Tulipas, 2005) – Tentativa de democratização, mas com instabilidade política prolongada.

•             Armênia (Revolução de Veludo, 2018) – Reformas políticas que afastaram o país da influência russa.

Esses movimentos foram vistos por Moscou como interferências ocidentais, levando a uma resposta mais agressiva da Rússia na região.

As instabilidades geradas foram uma forma de incendiar os governos de dentro para fora, facilitando o trabalho expansionista e sem grandes custos militares, possibilitando assim, focarem no fortalecimento de seu sistema financeiro e fortalecerem uma falsa impressão de futuro pacífico e promissor, oferecendo soluções ocidentais a aceitarem seu modelo como único modelo viável, desconsiderando e descartando qualquer outro tipo de valor, cultura e tradições históricas e que compunham a identidade nacional de cada país. O que precisavam fazer, a grosso modo, era lidar com as oposições e as definirem com estereótipos baratos e da eterna luta do bem contra o mal.

Novo papel

Dessa forma e considerando o avanço das Revoluções Coloridas e a crescente instabilidade no Leste Europeu, em muito ignoradas pelo Ocidente, a OTAN passou a ter suas novas diretrizes estratégicas, considerando o padrão ocidental de valores culturais, sociais e econômicos, além de introduzirem novas metas e novos desafios relacionados as pautas ambientais e climáticas, aprovando e determinando o Tratado de Paris, firmado em 2015, e estabelecendo novas funções para a aliança militar, incluindo:

•             Expansão da presença militar no Leste Europeu, especialmente nos países bálticos e na Polônia.

•             Fortalecimento da cooperação com a União Europeia, buscando alinhar políticas de defesa e segurança.

•             Apoio a governos pró-Ocidente, garantindo suporte militar e econômico para evitar retrocessos ‘democráticos’.

É importante ressaltar que o neoliberalismo, originalmente concebido como uma doutrina econômica voltada para a redução do papel do Estado, a desregulamentação dos mercados e a valorização da iniciativa privada, passou por uma transformação significativa ao longo das últimas décadas. O que começou como um modelo estritamente econômico acabou se expandindo para questões culturais e sociais, gerando impactos profundos na identidade das nações e na forma como a democracia passou a ser interpretada.

O neoliberalismo era essencialmente uma agenda econômica, promovida por líderes como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que defendiam a privatização, a redução de impostos e a flexibilização do mercado de trabalho. No entanto, a partir dos anos 2000, essa agenda começou a se expandir para valores culturais e sociais, interferindo diretamente na identidade das nações e moldando um novo modelo de Poder.

Essa mudança se manifestou em:

•             Imposição de valores universais que ignoravam tradições locais e culturais.

•             Promoção de pautas identitárias como parte da agenda econômica, criando divisões internas nas sociedades.

•             Confusão entre interesses de mercado e valores democráticos, onde países que não aderiam ao modelo neoliberal passaram a ser classificados como “não democráticos”.

Essa transição gerou resistência em diversas partes do mundo, especialmente em países do Leste Europeu, Oriente Médio e Ásia, que viam essas imposições como uma tentativa de homogeneização cultural.

Com o avanço do neoliberalismo para questões culturais, houve uma desestruturação das ideologias tradicionais. A direita e a esquerda, que historicamente tinham posições bem definidas, passaram a se afastar de suas bases originais, criando uma polarização diferenciada.

•             A direita tradicional, que antes defendia valores conservadores e nacionais, passou a adotar uma postura mais alinhada ao mercado global, muitas vezes abandonando princípios históricos.

•             A esquerda tradicional, que antes focava na luta de classes e na defesa dos trabalhadores, passou a priorizar pautas identitárias e culturais, muitas vezes deixando de lado questões econômicas fundamentais e a luta de classes.

Esse afastamento gerou um vazio ideológico, onde as disputas políticas passaram a ser menos sobre modelos de Estado e mais sobre conflitos culturais e sociais, muitas vezes sem um entendimento claro das consequências dessas mudanças.

Com a fragmentação das ideologias tradicionais, surgiu uma nova forma de polarização, onde:

•             As elites dominantes passaram a atuar de forma independente dos interesses nacionais, focando exclusivamente em seus próprios benefícios.

•             Grandes corporações passaram a influenciar diretamente políticas públicas, sem compromisso com o desenvolvimento dos Estados.

•             O público e o privado se tornaram cada vez mais indistintos, com governos cedendo espaço para interesses empresariais em áreas essenciais como saúde, educação e infraestrutura.

Confusão ideológica

Esta nova polarização não se baseia mais em direita versus esquerda, mas sim em interesses corporativos vs. soberania nacional, criando um cenário onde Estados perdem autonomia e sociedades se fragmentam em disputas que muitas vezes não refletem os verdadeiros desafios econômicos e sociais.

Com isso, a implantação dessa agenda acabou gerando impactos profundos na identidade das nações e na forma como a democracia é interpretada. A confusão ideológica afastou a direita e a esquerda de suas bases originais, promovendo uma polarização diferenciada que não se baseia mais em modelos de Estado, mas sim em disputas culturais e interesses corporativos. O futuro da governança global dependerá da capacidade dos países de redefinir suas prioridades e resgatar valores essenciais para o desenvolvimento e a soberania nacional.

Compreendida a questão geopolítica atual, podemos agora avançar e entender as mudanças que tanto geraram contradições internas com relação a OTAN, tradicionalmente um instrumento dos EUA, e que passou a atender cada vez mais aos interesses europeus, criando um desalinhamento estratégico entre Washington e Bruxelas.

Historicamente, a OTAN foi um instrumento de influência dos EUA na Europa, garantindo que os países europeus seguissem a política externa americana. No entanto, com a nova agenda europeia, surgiram divergências:

Não bastasse a complexidade dessa contradição, observamos outra significante dentro da própria Europa, já que Europa Ocidental promove uma agenda de integração e expansão da OTAN, enquanto países do Grupo de Visegrad e da Iniciativa dos Três Mares têm demonstrado resistência a essa estratégia. Os principais motivos incluem:

•             Preocupação com a escalada do conflito na Ucrânia, que pode afetar diretamente suas economias e segurança.

•             Rejeição às pautas neoliberais e identitárias, que são vistas como imposições externas.

•             Busca por maior autonomia política, evitando depender exclusivamente da União Europeia e da OTAN.

Essa oposição tem dificultado a formação de um consenso europeu, tornando a resposta ao conflito na Ucrânia fragmentada e inconsistente.

Dilema europeu

Dessa forma, quando observamos a falta de consenso sobre a estratégia europeia e os impactos intensos gerados a partir de discussões e debates no Parlamento Europeu e nas reuniões da OTAN, notamos que alguns dos principais pontos de discussão incluem: A viabilidade da expansão da OTAN para novos países, considerando os riscos de escalada militar. O impacto das sanções contra a Rússia, que afetam diretamente a economia europeia. A necessidade de uma política externa mais unificada, evitando divisões internas que enfraquecem a posição da Europa no cenário global.

Assim sendo, o que assistimos é um dilema estratégico com relação a agenda globalista em se adaptar às novas realidades geopolíticas, pois a resistência do Leste Europeu e o desalinhamento com os EUA indicam que o modelo atual está se tornando insustentável.

É possível, portanto, iniciar a sustentação de que a geopolítica europeia e suas contradições no cenário atual devem considerar os paradoxos que emergem da relação entre a União Europeia, a OTAN e os interesses estratégicos dos Estados Unidos, especialmente no contexto pós-Tratado de Paris. A reconstrução da Ucrânia, a fragmentação política interna da Europa e os impactos das sanções contra a Rússia são elementos que moldam um futuro incerto, onde a estabilidade do continente está cada vez mais ameaçada.

Desde a primeira Ukraine Recovery Conference, realizada em Londres em 2017, até as reuniões mais recentes, a agenda europeia tem buscado consolidar um plano de reconstrução para a Ucrânia. No entanto, essa iniciativa esbarra em desafios estruturais, como a falta de consenso que abordamos ao longo desse texto, entre os países do bloco e os impactos econômicos das sanções impostas à Rússia. A desaceleração econômica europeia, resultado direto dessas sanções, tem gerado tensões internas, especialmente no Leste Europeu, onde países como Polônia, Hungria e República Tcheca resistem à imposição de medidas que afetam suas economias.

A divergência entre os EUA e a OTAN também se tornou evidente nos últimos anos. Enquanto Joe Biden mantinha uma postura de apoio à agenda da OTAN pós-2015, Donald Trump sinalizou um distanciamento dessa estratégia agitando as placas tectônicas dos interesses europeus ao não apoiar e recusar mais ajuda à Ucrânia (além de estabelecer tarifas contra o bloco) visando a satisfação exclusiva de seus próprios interesses.

Cada um por si

A falta de alinhamento entre Washington e Bruxelas pode comprometer a unidade da aliança militar, especialmente diante da resistência de países do Grupo de Visegrad e da Iniciativa dos Três Mares, que se opõem à escalada do conflito na Ucrânia.

Outro fator crítico é a insistência de alguns países europeus em enviar armas para a Ucrânia, prolongando um conflito que, para muitos analistas, já está fadado ao fracasso. Em 2022, diversas tentativas de negociação entre Rússia e Ucrânia foram frustradas pela interferência de países europeus, que incentivaram a Ucrânia a continuar resistindo. Agora, com novas reuniões entre Rússia e Ucrânia na Turquia, há uma expectativa de que um cessar-fogo possa ser alcançado, mas as divisões internas na Europa dificultam um consenso sobre o futuro do país, marcados também pela visão não realista de Zelensky em considerar a devolução de todo o território conquistado pela Rússia, seja simplesmente devolvido como se nada tivesse acontecido.

Internamente, a Europa enfrenta um crescimento preocupante de movimentos ultranacionalistas, muitos deles com características fascistas e nazistas, como consequência de seus próprios erros estratégicos.

A insatisfação social e política tem gerado protestos e instabilidade, especialmente em países como Romênia, Sérvia, Montenegro e Bósnia, que historicamente carregam tensões étnicas e territoriais e se demonstram insatisfeitas com a interferência interna dos interesses da Europa Ocidental, versus os seus interesses Nacionais.

A Croácia, por sua vez, tem se aproximado da Alemanha, até por questões mais voltadas a própria identidade nacional, social e costumes, fortalecendo laços estratégicos que podem influenciar futuras decisões geopolíticas, mas não arrefecendo a insatisfação dos países dos Bálcãs que se demonstram cada vez mais crescentes.

A crescente rejeição ao domínio econômico francês na África pode acelerar mudanças estruturais na relação entre Paris e suas ex-colônias. A perda de influência nos países do Sahel representa um golpe significativo na política externa de Paris. A França depende fortemente da exploração das matérias-primas produzidas pelos países do Norte da África subsaariana que, além de tudo, usavam o franco CFA, emitido pelo Banco da França, como moeda comum vinculando sua política econômica e financeira aos interesses da antiga metrópole. Este quadro está ameaçado com a decisão do Chade de abandonar o sistema de moeda implantado por Charles de Gaulle no processo de descolonização como uma forma de perpetuar o domínio sobre seus antigos territórios africanos (leia mais aqui).

Nos Estados Unidos, a resistência às mudanças geopolíticas e a transição para um mundo multipolar têm gerado impactos sociais e políticos internos. A fragmentação política e a polarização ideológica dificultam a formulação de uma estratégia clara para lidar com a nova realidade global, muito dela resultante da falta de consenso entre os interesses das elites internas e o modo como as atuais políticas e taxações se voltaram contra o país e agravando a situação dos EUA em questão a sua relevância mundial.

Por fim, a questão do cessar-fogo na Ucrânia e o pós-guerra levantam dúvidas sobre o futuro da União Europeia e da OTAN. Se a guerra terminar, será esse o prelúdio de um novo conflito ainda mais severo? A fragmentação interna da Europa e a falta de consenso sobre o papel da OTAN podem levar a um racha definitivo, colocando em xeque a estabilidade do continente.

O cenário que se desenha é de uma Europa em crise, onde os ideais de integração e unidade são cada vez mais desafiados por interesses divergentes e pela realidade geopolítica emergente. A insistência no eurocentrismo e na manutenção de um modelo ultrapassado pode acelerar o declínio da influência do continente no mundo, tornando inevitável uma reconfiguração do poder global já em curso. O pós-guerra na Ucrânia será um teste definitivo para a capacidade da Europa de se adaptar ou sucumbir às suas próprias contradições.

Ricardo Amadesi Costa é bacharel em Direito, jornalista e analista geopolítico