A ambição dos EUA e a crise hídrica global

Por Pedro Paulo Rezende

A qualidade da água oferecida pelos Estados Unidos aos seus cidadãos está comprometida. Segundo Elaine Hill, doutora em economia do Departamento de Ciências da Saúde Pública da University of Rochester Medical Center, a prática do fraturamento hidráulico (fracking), empregada para retirar o gás de xisto do solo, compromete o lençol freático, cursos d’água e reservatórios em pequenos centros urbanos, o que resulta no aumento nas taxas de doenças crônicas, estresse sobre os prestadores de cuidados de saúde rurais e a necessidade crescente de serviços de saúde mental e dependência química. Este quadro impacta o bem-estar individual ao longo da vida, o que inclui saúde futura, educação e resultados do mercado de trabalho.

O fraturamento hidráulico, que emprega água e produtos químicos injetados sob alta pressão no solo, quebra a estrutura do subsolo e contamina aquíferos, ao mesmo tempo em que seu excesso, na superfície, prejudica a produção de alimentos poluindo o meio-ambiente. No entanto, este não é o único desafio enfrentado pelos 51 estados americanos. Uma ameba, a Naegleria fowleri, nativa do Golfo do México, começa a se espraiar para o norte. Verificada inicialmente no Texas, sua presença já foi detectada em Iowa e em Omaha. Ela causa uma espécie de meningite extremamente letal (99% de óbitos) ao se alimentar dos cérebros dos pacientes.

Na medida em que os Estados Unidos desperdiçam seu potencial hídrico, o que pode causar uma escassez futura, países como a República Popular da China buscam preservar seus recursos. O governo chinês, em 2017, decidiu cortar a produção agrícola nacional em 20%, de maneira a preservar seus aquíferos.

Apesar disto, o governo norte-americano decidiu se transformar no guardião da segurança hídrica no mundo. Criado pela vice-presidente Kamala Harris e anunciado em julho do ano passado, o Plano de Ação da Casa Branca para Segurança Global da Água abrange todo o espectro de questões globais relacionadas à água e procura estabelecer a liderança dos Estados Unidos na área. Este programa, tocado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) teria, segundo o documento, o objetivo de destacar, reforçar e, quando necessário, reorientar as ferramentas existentes do governo estadunidense para avançar o progresso em direção aos objetivos de segurança hídrica global.

Perigo

O interesse dos Estados Unidos pela questão da crise hídrica é um mau sinal para países que possuem o recurso em abundância, como o Brasil que detém 12% das reservas de água doce do Planeta, perfazendo 53% dos recursos hídricos da América do Sul. Grande parte das fronteiras do País é definida por corpos d’água – são 83 rios fronteiriços e transfronteiriços, além de bacias hidrográficas e de aquíferos.

O passado condena a ação da USAID envolta desde a década de 1950 em golpes de Estado na África, Américas e Ásia. Há provas concretas e transparentes de interferência da agência nas eleições da Nicarágua, onde a ação do governo conseguiu desarticular a ação, e, neste caso bem sucedida, na anulação do pleito presidencial da Bolívia com a eventual renúncia de Evo Morales à chefia de Estado.

A mídia de oposição boliviana, centrada em Santa Cruz de La Sierra, recebeu financiamentos altos para divulgar conteúdo falsos contra Morales. Estes recursos continuaram, depois de consolidado o golpe, para favorecer a autodeclarada presidente do país, a senadora Jeanine Áñez Chávez. O objetivo estadunidense ficou claro quando o empresário Elon Musk admitiu que suas empresas se beneficiariam com a possibilidade de controle das reservas de lítio do país, as maiores em termos globais.

Números alarmantes

A verdade é que a água torna-se uma mercadoria cada vez mais rara. O uso mundial de água cresceu mais do que o dobro da taxa de crescimento demográfico desde o início do século 20. A escassez do recurso afeta aproximadamente 40% da população mundial e, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Banco Mundial, secas poderiam colocar 700 milhões de pessoas em risco de deslocamento em 2030.

Conflitos

O Foro Econômico Mundial coloca, desde 2012, a escassez hídrica como um dos cinco maiores perigos na lista de riscos globais por impacto. Peter Gleick, diretor do Pacific Institute, com sede em Oakland, Califórnia, passou as últimas três décadas estudando o vínculo entre a escassez de água, guerras e migração. Junto com sua equipe, ele preparou um documento que cataloga todos os contenciosos e guerras desde os dias do rei babilônico Hamurabi. O Water Conflict Chronology lista 1298 eventos grandes e pequenos, mas a cronologia revela a complexa relação entre água e conflitos.

A maior parte dos conflitos está relacionada à agricultura, que representa 70% do uso da água doce no planeta. Os dados revelam que o crescimento populacional e os altos níveis de irrigação já ultrapassaram os suprimentos de água subterrânea disponíveis.

Os acordos para compartilhar a água são uma forma comum de acalmar esse tipo de disputa. Foram firmados mais de 200 acordos desse tipo desde o final da Segunda Guerra Mundial, como o Tratado de Águas do Indo de 1960, entre Índia e Paquistão, e o acordo entre Israel e Jordânia firmado antes do tratado de paz, mas uma tentativa de mais de uma década da ONU de introduzir uma Convenção Global da Água sobre rios e lagos transfronteiriços só conseguiu que 43 países aderissem à iniciativa.

Um exemplo positivo é o de Lesoto, África do Sul, Botsuana e Namíbia que, após um aumento perigoso nas tensões por acesso à água no ano 2000, intensificaram a cooperação através da chamada Comissão do Rio Orange-Senqu (Orasecom). Neste caso, a negociação de acordos, com a consagração dos princípios de uso razoável da água, foi suficiente para aliviar a situação.

Vários países estão impulsionando iniciativas para administrar melhor a água. O Peru, por exemplo, requer que os provedores de serviços de água revertam parte de seus lucros em pesquisa e uso de infraestrutura verde na gestão de águas pluviais. O Vietnã está combatendo a poluição industrial ao longo de sua parte do Delta do Mekong e também está integrando infraestrutura para garantir uma distribuição mais justa entre seus residentes urbanos e rurais.

À medida que as mudanças climáticas e o crescimento populacional continuam a agravar o problema das secas em todo o mundo, essas soluções serão cada vez mais necessárias para interromper o conflito e a migração.