Saddam, de herói a crápula

A ascensão e queda do líder iraquiano Saddam Hussein começa em outro país, o Irã: em abril de 1979, o aitolá Ruḥolah Khomeinī, líder religioso xiita, derrubou o xá (imperador) Mohammad Reza Pahlevi, maior aliado dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, e fundou a primeira teocracia do mundo moderno, a República Islâmica do Irã. A novidade foi mal recebida pelo Ocidente, atingido pela primeira grande crise causada pela Guerra do Yom Kippur. Em lugar de um regime subserviente, amistoso e corruptível, o terceiro maior produtor de petróleo estava nas mãos de um regime nacionalista e fundamentalista. O rompimento torna-se ainda mais evidente com a invasão da Embaixada dos Estados Unidos em Teerã por estudantes iranianos, sete meses depois do início do movimento, em novembro.

O Irã segue uma tendência minoritária do islã, o xiismo. Ela corresponde a 30% dos seguidores da religião. No Irã, no Iraque e no Iêmen os xiitas são maioria. Além destes países, há manchas étnicas expressivas em províncias no Afeganistão, no Líbano e na Síria. Os xiitas seguem as orientações do genro e primo do profeta Maomé, Ali. O movimento foi derrotado por dissidentes, que formaram a corrente sunita, depois de um longo conflito. Este grupo se tornou majoritário e passou a oprimir os xiitas na maioria das áreas dominadas pelos muçulmanos.

Aqui cabe um pouco de história: na divisão do Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial, britânicos e franceses usaram critérios artificiais para redefinir as fronteiras. Um dos maiores prejudicados neste processo foi Faisal I bin Al-Hussein bin Ali Al-Hashemi, candidato do agente secreto, arqueólogo e cientista político Thomas Edward Lawrence (o Lawrence da Arábia) ao Reino da Arábia Saudita.

Traição

Lawrence ficou conhecido por conseguir unir, sob o comando político de Faisal, as tribos árabes (sunitas e xiitas) contra os turcos, o que ficou conhecido como Revolta Árabe. Graças a sua popularidade junto à elite intelectual de Londres e Paris, se transformou em um obstáculo aos ministérios de negócios estrangeiros da França e do Reino Unido.

Faisal, a exemplo de Lawrence, acreditava em uma Arábia unida reunindo todas as tribos em um só país, o que o ocidente jamais aceitaria. Britânicos e franceses decidiram entregar o maior produtor de petróleo, a Península Arábica, à família Saudi, mais manobrável e corrupta. Para Faisal, inicialmente, foi destinado o Reino da Síria, sob protetorado francês, mas diante de sua falta de cooperação e influência decidiram criar um reino maior, o do Iraque, para lhe entregar o comando. Claro que havia uma pegadinha: a maioria da população era xiita e ele era sunita, fato que marcaria a vida do país até hoje.

Em 1958, um golpe de Estado sangrento derrubou a monarquia iraquiana. O partido pan-arabista Baath, laico, toma o poder em 1966. Em 1979, no mesmo ano da Revolução Islâmica do Irã, Saddam Hussein, assume a presidência do Iraque. Seu principal medo era um levante xiita promovido pelos aiatolás iranianos, que também davam apoio à minoria curda, que habita a fronteira norte do país. Também havia questões fronteiriças pequenas: ele não aceitava a mediação de 1975 que entregou a cada país uma margem do canal de Shatt al-Arab, onde deságuam os rios Tigre e Eufrates.

O paladino do ocidente

Saddam se transformou no paladino do Ocidente ao invadir o Irã em setembro de 1980. Esse conflito foi responsável pela morte de cerca de 1,5 milhão de pessoas e ficou marcado por acabar sem vencedores, pois nenhuma das duas nações conseguiu se impor militarmente. O líder iraquiano apostou na desestruturação e desmoralização das Forças Armadas Iranianas. O xá Reza Pahlevi montara um forte aparato com apoio dos Estados Unidos. Seu arsenal contava com caças F-14A Tomcats e carros de combate M60, mas, com a ascensão da Revolução Islâmica, a maioria dos pilotos treinados e militares de alta patente estava na cadeia. A solução encontrada pela teocracia xiita foi pragmática: reintegrá-los à Força Aérea e ao Exército e apostar no patriotismo.

Além disto, as forças revolucionárias levantaram grandes massas de voluntários dispostos a morrer na resistência ao invasor. A solução encontrada por Saddam, com apoio da empresa alemã Karl Korb e financiamento dos Estados Unidos, foi apostar em armas químicas. Ele montou dois complexos de manufatura em Faluja e Samarra capazes de processar os gases TABUN e SARIN, que afetam o sistema nervoso, e investiu na produção de gás mostarda. O conflito prosseguiu até 1988, quando o Irã aceitou entregar o controle do Shatt al-Arab ao Iraque.

De presidente a ditador

Em 1990, Saddam, em uma virada surpreendente, entregou os ganhos territoriais ao Irã. Em 2 de agosto, invadiu o Kuwait, um emirado com fortes laços com os Estados Unidos e o Reino Unido. O contencioso era antigo. O Rei Faisal I acreditava que a região lhe pertencia, mas o Reino Unido manteve o controle da área até 1961, quando concedeu independência à colônia.

Além de acreditar que o Iraque possuía direitos sobre o Kuwait, Saddam alegava que o país vizinho roubava as reservas de petróleo localizadas em lençóis fronteiriços por meio da perfuração de poços diagonais que atravessavam os limites territoriais estabelecidos. O presidente do Egito, Hosni Mubarak, tentou uma mediação do conflito, mas não houve avanço nas negociações. Em meio a este processo, o chefe de Estado iraquiano convocou a embaixadora dos Estados Unidos, April Glaspie, para uma conversa com ele e o Ministro das Relações Exteriores, Tariq Al-Azis. O diálogo foi bastante dúbio.

A representante diplomática americana afirmou que o secretário de Estado James Baker, nomeado pelo presidente George Howard Bush, não tinha opinião formada sobre conflitos entre países árabes. Segundo Tariq Al-Azis, Saddam interpretou a conversa como uma carta branca para atacar e que receberia apenas um protesto formal do governo americano e 300 mil soldados invadiram o Kuwait. Foi o ponto de virada para as agências noticiosas ocidentais: o chefe de Estado iraquiano passou de presidente a ditador.

A ofensiva teve uma resposta inédita: a Organização das Nações Unidas formou uma coligação internacional de 31 países sob comando norte-americano que incluía nações árabes ao lado de forças europeias e até mesmo sul-americanas (a Argentina enviou dois navios que participaram do bloqueio). O conflito terminou em fevereiro de 1991, com a derrota militar do Iraque, mas Saddam Hussein se manteve no poder. Na época, ele ainda controlava um grande arsenal de armas químicas e ainda conseguiu salvar suas melhores unidades de combate.

Enquanto as Nações Unidas e o regime iraquiano discutiam os termos da rendição, grupos xiitas e curdos tentaram derrubar Saddam Hussein, que usou todo o aparato bélico que restava e eliminou a insurgência usando gás, blindados e canhões. A coalizão não interferiu e um massacre se desdobrou sob os olhos das Nações Unidas. Depois disto, Bagdá destruiu seu arsenal de armas de destruição em massa, como Maurício Bustani atestou.

O presidente norte-americano, George Wayne Bush, atacou o Iraque em 20 de março de 2003 apoiado, apenas, por Austrália e Reino Unido, sem o endosso das Nações Unidas e com o uso de alegações falsas — entre elas uma aliança entre Saddam e o líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden, nos ataques de 11 de agosto de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono.

O avanço até Bagdá demorou apenas 26 dias. Sob embargo decretado pela ONU, o Exército Iraquiano era uma sombra da máquina de guerra de 1990. Saddam foi encontrado e preso em 13 de dezembro de 2003. Os norte-americanos afirmaram que ele não resistiu, mas seu rosto apresentava sinais de detonação de uma granada de efeito moral, que lança pequenos estilhaços não letais e solta uma enorme quantidade de luz que causa desorientação e tontura.

O líder iraquiano foi enforcado em 30 de dezembro de 2006. Sua morte, em verdade, removeu um obstáculo à Al Qaeda e ao extremismo islâmico. Entre os erros cometidos pela administração norte-americana no Iraque se encontram a desmobilização do Exército Nacional, que jogou 300 mil homens treinados na penúria, sem nenhuma compensação monetária ou possibilidade de encontrar trabalho. Resultado, participaram da resistência ao invasor.

Os que foram presos enfrentaram condições extremamente desumanas, inclusive tortura, em Abu Ghraib onde se juntaram a extremistas fundamentalistas da Al Qaeda, o que deu origem ao Exército Islâmico da Síria e do Levante (ISIS) que chegou a dominar boa parte do Iraque e da Síria (leia mais aqui). Os principais resultados da intervenção estadunidense, que ainda continua, foram a morte de 400 mil civis e a metástase do terrorismo sunita em todo o Oriente Médio. (PPR)