Por Pedro Paulo Rezende
O anúncio da nova Plataforma Continental Estendida (ECS, na sigla em inglês) dos Estados Unidos traz uma série de inquietudes. O território acrescenta 1 milhão de quilômetros quadrados ao controle norte-americano, o equivalente a duas Califórnias (ou ao nosso estado de Mato Grosso). As áreas reivindicadas abrangem solos marinhos no Ártico, no mar de Bering, no Atlântico, no Pacífico no Golfo do México e no Caribe e avançam por limites já solicitados pelas Bahamas, pelo Canadá e pelo Japão. O grande problema é que o país não é signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). (Leia mais aqui)
Ao contrário do conceito de Zona de Exploração Exclusiva, as ECS não dão direito à coluna d’água sobre a área estabelecida. O controle está limitado ao solo e ao subsolo. O governo estadunidense demanda em uma ação unilateral uma área que contém nódulos polimetálicos e 50 minerais estratégicos, incluindo lítio e telúrio, e 16 elementos de terras raras. A ideia do Departamento de Estado é negociar os novos territórios diretamente com os países afetados. O maior prejudicado, sem dúvida alguma, é o Canadá, que ainda não teve seus limites marítimos definidos pelo Conselho da CNUDM.
Para reconhecer as demandas de um país, é necessária a entrega de uma documentação que comprove a extensão da plataforma continental sob seu controle. O Brasil possui ampla experiência neste trabalho e ajudou nações africanas a cumprir as determinações da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi o primeiro a entregar os estudos oceanográficos que comprovavam, fartamente, seus direitos sobre uma área que abrange 6 milhões de quilômetros quadrados, batizada de Amazônia Azul. Ottawa só forneceu seus levantamentos em 2015 e, em 2017, recebeu das autoridades da CNUDM uma recomendação de que refizesse boa parte do trabalho.
Os Estados Unidos afirmam que seguiram as recomendações da convenção, mas sua ação, em termos de direito internacional, é unilateral. O Departamento de Estado afirma apoiar a CNUDM, mas o Congresso nunca ratificou o acordo e a Comissão de Relações Exteriores do Senado (quem decide a política externa é o Poder Legislativo) não permitiu que o país assinasse o documento.
Washington conta com a subserviência dos países que serão afetados. O Japão, até hoje, sofre os efeitos da derrota na Segunda Guerra Mundial e tem seu território ocupado militarmente pelos Estados Unidos. Suas pretensões marítimas foram confirmadas pela ONU, mas seria difícil resistir a uma pressão firme do governo norte-americano. A defesa aérea do Canadá está interligada à rede de alerta antecipado estadunidense — conhecida como NORAD (sigla em inglês de North American Aerospace Defense Command).
A Casa Branca, no anúncio da nova ECS, garantiu que já assegurou suas reivindicações com a Rússia, detentora da maior plataforma continental homologada no Ártico, com a Noruega, com o México e com Cuba. Trata-se de uma meia verdade. O acordo com Moscou foi firmado no tempo da antiga União Soviética que concedeu algumas áreas ao Canadá, mas podem virar objeto de litígio se as autoridades de Ottawa tentarem entregá-las a Washington.
Outro ponto que não está claro é a autoridade legal para homologar eventuais contenciosos entre as partes. A Convenção de Montego Bay deixa clara a autoridade das Nações Unidas, mas os Estados Unidos, como explicado acima, não é signatário do documento. Não há nenhum dispositivo que permita que a CNUDM sirva de mediadora em um processo que envolva um país que assinou o tratado.
Ordem legal sob ataque
O respeito ao direito soberano dos países vizinhos é uma posição pacífica e consolidada desde a 3ª Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que se reuniu em Caracas a partir de dezembro de 1973, convocada pela Resolução 2750-C (XXV) da Assembleia-Geral da ONU de 1970. As discussões se encerraram em 1982, com a aprovação do texto final na cidade jamaicana de Montego Bay.
O tratado entrou em vigor em 16 de dezembro de 1994, doze meses após a data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ou adesão, em 16 de novembro de 1994, conforme o estabelecido no artigo 308, parágrafo 1º, do Tratado. Foram estabelecidas as seguintes regras:
a) Limite exterior do mar territorial em 12 milhas náuticas, definindo-o como uma zona marítima contígua ao território do Estado costeiro e sobre a qual se estende a sua soberania;
b) Estabelecimento de uma zona contígua de 12 milhas náuticas, dentro da qual o Estado costeiro pode exercer jurisdição com respeito a certas atividades como contrabando e imigração ilegal;
c) Uma zona econômica exclusiva (ZEE), tendo como limite externo uma linha a 200 milhas náuticas da costa e como limite interno a borda exterior do mar territorial, na qual o Estado costeiro tem soberania, no que respeita a exploração dos recursos naturais na água, no leito do mar e no seu subsolo;
d) Esta zona poderá ser ampliada até o limite da plataforma continental levantada por meios geofísicos.
Resta saber se Bahamas, Canadá e Japão irão ceder direitos internacionalmente reconhecidos para acatar a decisão unilateral estadunidense. O aparato legal estabelecido está sob ataque, por mais que o governo norte-americano afirme o contrário.

