Por PEDRO PAULO REZENDE
Seis meses depois de iniciada, vale avaliar o processo de adesão da Finlândia e da Suécia junto à Organização do Tratado do Atlântico Norte o(OTAN). Em artigo anterior (veja mais aqui) afirmei que o ato apenas formalizava o que todos já sabiam: a participação ativa dos dois países na aliança ocidental envolta em uma embalagem de falsa neutralidade. Isto era evidente desde a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 26 de dezembro de 1991. Os dois países usavam um duplo padrão em suas relações diplomáticas favorecendo os Estados Unidos e a Europa.
Em termos operacionais, a única mudança expressiva seria a possibilidade dos parlamentos finlandês e sueco aceitarem abrigar armas nucleares táticas norte-americanas, a exemplo do que ocorre hoje com a República Federal da Alemanha e a Polônia. Este mecanismo, criado na década de 1950, permite que forças aéreas aliadas armem seus aviões com artefatos armazenados sob guarda americana (leia mais aqui).
Nesta hipótese, a maior ameaça seria a Finlândia. Em primeiro lugar, por dispor de aviões adequados para a missão. A Força Aérea Finlandesa opera, atualmente, caças-bombardeiros Boeing F/A-18C/D Hornet que poderiam ser adaptados rapidamente para a missão. O caso ainda é mais grave a partir do momento em que estes aviões de combate serão substituídos, em um futuro próximo, por aviões furtivos Lockheed-Martin F-35A Lightning, muito mais difíceis de detecção pela rede de radares russa.
O segundo ponto de risco para a Federação Russa está na proximidade de alguns centros importantes, como São Petersburgo, com a fronteira finlandesa. Em um voo de 10 minutos a partir da Base Aérea de Tampere–Pirkkala, um caça F-35A chegaria à capital cultural da Rússia. Isto implica em mudanças sérias que necessitarão ser implantadas no futuro. A Suécia oferece um risco menor. A Força Aérea do país está equipada com caças SAAB J-39 Gripen dos modelos C e E, estes últimos em processo de incorporação (só serão plenamente operacionais em 2025). São bons aviões para garantir o flanco da OTAN, com capacidade adequada de defesa aérea, mas que não podem receber armas nucleares.
A decisão caberia aos parlamentos dos dois países, mas pode implicar na violação de tratados de controle de armas nucleares firmados no passado (ao mesmo tempo em que colocam a população finlandesa e sueca sob a mira do arsenal nuclear russo).
A Base de Norrbotten
Em 2002, tive a oportunidade de visitar a Norrbottens Flygflottilj (Ala Aérea de Norrbotten), também designada como F 21 Luleå. A unidade é simplesmente a primeira linha de defesa da Suécia contra qualquer ameaça que pudesse partir da Federação Russa por ar, terra ou mar. A base reunia dois esquadrões de caça equipados com o SAAB J-39 Gripen A/B e o último esquadrão de interceptação equipado com o SAAB JA-37 Viggen.
Durante o briefing, ficou claro que a unidade, apesar da neutralidade sueca, estava perfeitamente integrada com a OTAN. Na época, o país utilizava o melhor sistema de enlace de dados do mundo, o TIDLS, capaz de integrar os Gripen e os Viggen com aviões equipados de radar de alerta (AWACS) SAAB Erieye, unidades de terra e de mar. Um soldado isolado podia alimentar os aviões de caças por meio de um sistema portátil e um computador analisava e classificava a importância da informação em tempo real para determinar a resposta necessária. Em nenhum momento da exposição foi citada uma possível ameaça europeia e a necessidade de se coordenar a defesa com a Rússia. Em 2012, a Suécia abriu mão de seu sistema de enlace de dados e adotou o LINK 16 empregado pela Aliança Atlântica, claramente inferior em recursos.
O caso finlandês
A partir da derrota na Segunda Guerra Mundial, a Finlândia adotou uma rígida política de neutralidade. Adquiria sistemas de armas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do Ocidente. Durante um tempo, operou caças suecos J-35 Draken ao lado de MiG-21 soviéticos. Isto começou a mudar em 1992 com a aquisição de aviões norte-americanos Boeing (então McDonnell-Douglas) F/A-18C/D Hornet pela Força Aérea finlandesa.
Com a queda do regime socialista em Moscou e a dissolução da União Soviética, o país começou a pender para o Ocidente. Adotou o Link 16 e rígidos padrões da OTAN para seu reequipamento aéreo. Em terra, apesar de ainda dispor de uma grande quantidade de material de origem soviética (carros T-72, de combate, e BMP-1, de transporte de tropas) a Finlândia passou a cooperar cada vez mais com a Aliança Atlântica e é, hoje, um grande exportador de material para a União Europeia.
Esta tendência de se afastar da Rússia e se aproximar da OTAN se consolidou no ano passado com a seleção dos caças furtivos Lockheed-Martin F-35A Lightning II, de fabricação estadunidense, pela Força Aérea Finlandesa. É bom ressaltar que os requerimentos determinavam a completa interoperacionalidade com as forças ocidentais e que apenas fabricantes europeus e norte-americanos participaram do processo de licitação.
Aposta incerta
A entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN é, simplesmente, a formalização de um processo que se iniciou com a dissolução da União Soviética em 26 de dezembro de 1991. Os governos dos dois países aproveitaram a operação especial da Federação Russa na Ucrânia para passar o projeto de lei sem necessidade de consulta popular por meio de referendo, como é usual nas duas democracias, mas o processo ainda depende da aceitação unânime de todos os sócios do bloco e a aprovação dos parlamentos Hungria e da Turquia ainda não está garantida.
A Suécia possui uma rígida política de asilo a representantes de povos perseguidos por questões étnicas e religiosas. Abriga militantes nacionalistas de várias tendências, inclusive 100 mil curdos, que possuem um longo contencioso com a Turquia, que lhes nega o direito de constituir um país. Para aprovar o acesso dos dois países à OTAN, o presidente Recep Tayyip Erdoğan exigiu a entrega de 150 militantes, a maioria deles ligados ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), reconhecido como organização terrorista pela maioria dos governos (leia mais aqui).
O governo sueco, contra todo o seu histórico de defensor das minorias e da democracia, entregou Mahmut Tat, um motorista de ônibus da cidade de Dersim, no dia 4 de dezembro do ano passado. Ele foi sentenciado com uma pena de prisão de seis anos e dez meses por supostas ligações ao PKK. Fugiu do país para a Suécia e pediu asilo, mas este foi recusado. De acordo com o curdo, o seu único crime foi participar “em protestos democráticos”. Ao que acrescenta “como um cidadão vulgar, tomei o lado dos oprimidos e apoiei a luta democrática. Se isto é terrorismo, então sim, sou terrorista”, disse segundo o portal noticioso turco Duvar. Os seus apoiadores salientam que não teve direito a um julgamento e temem como será tratado na Turquia.
Bülent Keneş é um jornalista turco que atualmente vive exilado na Suécia e trabalha para o Stockholm Centre for Freedom, uma organização não-governamental que monitora os direitos humanos dos refugiados. Anteriormente, ele atuou como editor-chefe do Today’s Zaman, jornal de língua inglesa publicado em Ancara. Ele consta da lista de Erdogan, mas teve sua extradição proibida pela Suprema Corte da Suécia. As autoridades turcas alegam que ele participou da tentativa de golpe de Estado de 2016, que teve sinais de interferência do Departamento de Estado norte-americano.
É interessante observar que a Suécia foi o segundo país a reconhecer o PKK como organização terrorista, logo depois da Turquia, mas a política liberal na concessão de asilo sempre falou mais alto no acolhimento de refugiados. Os curdos, além de tudo, formam o efetivo mais confiável de aliados dos Estados Unidos no Iraque e na Síria, mas são reprimidos de maneira dura pelo governo turco.
Esta sempre foi uma questão difícil. O Departamento de Estado norte-americano afirma que o PKK é uma organização terrorista, mas, ao mesmo tempo, reconhece as Unidades de Proteção Popular (YMG), ligadas ao grupo proscrito, como parte legítima das Forças Democráticas Sírias. É um clássico caso de duplo-padrão que a Turquia não aceita.
Radicalismo
No dia 22 de janeiro, o político de direita dinamarquês-sueco Rasmus Paludan, líder do Partido Stram Kurs (linha dura, em português) queimou um exemplar do Corão durante uma manifestação em frente à embaixada da Turquia em Estocolmo. Racista, defensor do poder branco, fundamentalista cristão, anti imigração e anti islâmico, ele alegava mostrar ao governo turco o verdadeiro significado da liberdade de expressão. O ministro de Negócios estrangeiros da Suécia, Tobias Billström, minimizou:
— O fato de tais manifestações poderem ocorrer no país faz parte da democracia sueca.
Obviamente, Erdogan não aceitou as desculpas. A Turquia tomou a ação como uma violação sueca do acordo de adesão à OTAN. O chefe de Estado turco lembrou, de maneira ácida, que o Parlamento do país ainda não ratificou o acordo e que, sem a unanimidade dos membros, o tratado não tem valor. É bom ressaltar que vários líderes islâmicos e somaram aos protestos contra Paludan.
A chancelaria em Ancara classificou o ato como um “ataque vil ao livro sagrado e demonstração de propaganda.” Ramzan Kadyrov, líder da República Russa da Chechênia, de maioria muçulmana, afirmou que todos os envolvidos nesta “brincadeira desprezível atraíram a condenação eterna sobre si mesmos.” A chancelaria do Kuwait emitiu um comunicado em que enfatizou que tais ações “podem causar indignação entre os muçulmanos em todo o mundo e se tornar uma provocação perigosa.” A Arábia Saudita também condenou veementemente a ação, afirmando que, em vez de ódio e extremismo, é necessário difundir os valores do diálogo e da convivência pacífica. Os Emirados Árabes Unidos apelaram pelo respeito aos símbolos religiosos e à rejeição aos insultos às religiões, suas relíquias e santuários.

