Cascas de banana diplomáticas

Por PEDRO PAULO REZENDE

O Brasil deve rejeitar o pedido do governo da Ucrânia para a aquisição de até 450 Viaturas Blindadas de Transporte de Tropas sobre rodas (VBTT) Guarani 6×6 em configuração ambulância. Segundo uma fonte da diplomacia nacional, a decisão final levará em conta o status de neutralidade do governo brasileiro, considerado indispensável para um país que pretende mediar o conflito entre Kyiv e Moscou.

Os ministros da Defesa, José Múcio Monteiro, e das Relações Exteriores, Mauro Vieira, examinam a proposta de maneira coordenada e não há conflito de interesses entre as duas pastas, ao contrário do publicado por meios de comunicação especializados e pelo jornal Estado de São Paulo que defenderam, de forma escancarada, a aprovação do pedido.

O texto do documento, protocolado no dia 27 de abril pela Embaixada da Ucrânia, apela para o emocional e se distancia do tom frio que sempre envolve negociações de equipamentos militares. Os veículos seriam destinados ao Serviço de Emergência do Estado da Ucrânia. Deveriam ser entregues nas cores laranja e amarelo e destinados à retirada de civis das zonas de conflito e transporte de feridos das áreas de combate até os hospitais.

Além das viaturas, o pacote deveria incluir suporte logístico para dois anos de operação, pacote de treinamento de equipe de manutenção e de manejo do veículo. Não foi solicitada a inclusão de nenhum armamento. As condições de pagamento seriam à vista em euros com uma carta de garantia financeira assinado pelo Governo da República Federal da Alemanha (o pedido cita “cotas de países aliados”) não incorporada ao documento.

Coincidências

Os estudos realizados pelas duas pastas estabelecem alguns pontos que reforçam a possível rejeição do pedido. A maior delas seria a ausência de garantia de que os veículos não serão militarizados ao chegarem à Ucrânia ou durante a rota, o que romperia a situação de neutralidade brasileira estabelecida em 2022 durante a gestão do chanceler Carlos França e reafirmada pelo ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, em janeiro deste ano.

A Defesa e o Itamaraty também ressaltaram uma coincidência: o conteúdo é extremamente similar a outro documento — escrito em tom mais técnico — recebido pelo Ministério da Defesa durante a gestão do general de Exército Walter Braga Netto. A única diferença estava no fato de que as VBTT Guarani, na carta anterior, não seriam transformadas em ambulância. O total a ser adquirido era exatamente o mesmo: 450 veículos. A similaridade entre o Guarani e o Veículo de Combate 8×8 Freccia, empregado pelo Exército Italiano, facilitaria a militarização do equipamento brasileiro.

Os meios especializados destacaram que o pacote ajudaria a desenvolver a versão ambulância, que integra os planos do Exército Brasileiro, mas ainda não desenvolvida. No documento, não há qualquer referência a quem pagaria pelo projeto do novo modelo. Também não há prazos definidos para a entrega dos veículos. A verdade é que a possível encomenda supera a capacidade de fabricação da unidade da IVECO em Sete Lagoas. Até hoje, 600 Guaranis foram recebidos pela Força Terrestre, o que prova que falta realismo no requerimento.

Constrangimento

O presidente Luíz Inácio Lula da Silva realmente está empenhado em negociar uma saída pacífica para o conflito em Donbass. Ele tratou do assunto com os líderes dos sete países mais desenvolvidos do mundo, o G7; com o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, e, por meio de seu assessor internacional, embaixador Celso Amorim, com os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodimir Zelensky. O país, em função disto, precisa se manter em posição neutra, sem fornecer equipamentos militares para qualquer um dos lados.

O pedido da Embaixada da Ucrânia foi visto pelo Itamaraty como uma forma de criar constrangimentos para o Brasil às vésperas da participação do presidente Luíz Inácio Lula da Silva na Cúpula do G7, grupo dos sete países mais ricos do bloco ocidental, que se realizou em Hiroxima, Japão, entre os dias 19 e 21 de maio. Esta impressão foi reforçada pouco antes do encontro.

O embaixador Celso Amorim, durante sua visita a Kyiv no último dia 10, se encontrou com o vice-ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Andriy Melnyk, e com o presidente Volodimir Zelensky. Na ocasião, foi informado de que o chefe de Estado ucraniano compareceria ao encontro do G7. O diplomata brasileiro colocou então a possibilidade de um encontro durante a cúpula, mas não recebeu qualquer resposta.

A proposta de paz brasileira parte de um cessar fogo entre a Ucrânia e a Rússia como ponto inicial do seu esforço. A chancelaria de Kyiv desconversou, mas, assim que Zelensky chegou a Hiroxima, anunciou que queria um encontro com o chefe de Estado brasileiro e o chanceler Mauro Vieira. Possíveis alternativas de horário foram oferecidas à delegação ucraniana que chegou a confirmar um encontro, mas não compareceu.

Marcação sob pressão

Um tour do ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmitro Kuleba, pela América Latina deve ocorrer nos próximos dias. O objetivo é o mesmo de uma manobra de Zelensky executada durante a viagem para Hiroxima, no dia 19 de maio. Ele participou de um encontro de cúpula da Liga Árabe, na cidade saudita de Jeddah, onde reclamou que existiam países-membros da organização que “fizeram vista grossa” perante as “anexações ilegais” da Rússia. A reunião era histórica porque marcava a volta da Síria, país gravemente atingido por uma guerra híbrida patrocinada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e que conseguiu virar o jogo com o apoio da Federação Russa.

O ocidente bancou a chamada oposição democrática síria contra o presidente Bashar Al Assad, sem levar em conta que as forças antigoverno se aliaram ao Exército Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL), grupo terrorista sunita que pretendia fundar um califado no Iraque e na Síria. O resultado foi uma tentativa de limpeza étnica contra as populações alauítas, cristãs, drusas e xiitas do país, derrotada graças ao apoio das forças de Moscou. Os Estados Unidos, até hoje, ocupam uma pequena faixa de território sírio onde extraem petróleo para financiar suas operações.

A manobra de Zelensky não deu certo. A Liga Árabe se manteve neutra. Alguns de seus países — como Arábia Saudita, Argélia e Egito — se aproximam do BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e resolveram que as queixas ucranianas não devem prejudicar seus interesses.

Momento ruim

Kuleba visitará a América do Sul em um momento ruim. No momento, a quase totalidade dos países da região está nas mãos de governos que não são submissos aos interesses do ocidente e que procuram se aproximar do BRICS. A exemplo do Brasil, mantêm uma posição neutra, embora defendam a integridade territorial da Ucrânia e não devem assumir uma posição antirrussa. Além disto, há um vexame comercial, eivado de acusações de corrupção.

 O Ministério do Interior do Peru anulou, no dia 9 de abril, o contrato de compra de um exemplar do cargueiro militar Antonov An-178 (concorrente direto do EMBRAER KC-390) que seria destinado à Polícia Nacional do país. A negociação com o fabricante foi intermediada pela SpetsTechnoExport (STE), empresa estatal de exportação da Ucrânia. O acordo avaliado em US$ 64 milhões foi cancelado porque o fabricante não cumpriu o prazo de entrega da aeronave, que era previsto para 24 de outubro de 2021.

Antes da anulação do contrato, surgiram sérios problemas no projeto, derivado de um modelo civil, o Antonov An-148. O maior deles é a utilização de lastros para garantir o centro de gravidade — no KC-390 isto é função do Flight Control System (FCS) e do Flight By Wire(FBW). A falta de capacidade dos ucranianos de cumprirem um contrato já era prevista pela EMBRAER. A Antonov está limitada à construção de protótipos desde 2010.

Ofensiva

O Itamaraty se prepara para uma possível ofensiva antibrasileira durante a viagem de Kuleba, com o objetivo de empurrar o Brasil para a aliança ocidental. Uma amostra pode ser medida antes da feira LAAD Defence & Security, realizada entre os dias 11 e 15 de abril. A STE tentou participar do evento, mas não cumpriu as condições contratuais. O resultado foi uma onda de rumores na Europa contra o governo brasileiro por interferência indevida no processo, o que é falso.

A nomeação do vice-ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Andriy Melnyk, para o posto de embaixador extraordinário da Ucrânia junto ao Brasil é outra possível casca de banana. Ele se tornou notório por defender um criminoso de guerra, o líder nacionalista Stepan Bandera, na TV alemã.

Os seguidores de Bandera foram responsáveis pelas mortes de 500 mil judeus e 250 mil poloneses na Segunda Guerra Mundial. Apesar de detido na parte vip do campo de extermínio de Buchenwald (leia mais aqui) por defender a independência ucraniana, ele apoiou o processo de recrutamento dos seus partidários pelas Waffen SS (unidades de combate do Partido Nazista).

Até agora não está confirmado se Melnyk vai acumular a função de vice-ministro com a representação em Brasília e exerceria seu trabalho de maneira remota, o que seria inusitado, mas não há qualquer dúvida de que o objetivo da Ucrânia e do G7 é tentar afastar o Brasil de sua neutralidade e do BRICS em um momento onde o dólar deixa de ter o monopólio das negociações de petróleo e se fragiliza. O Itamaraty está ciente, vai se manter equidistante das duas partes do conflito e continuar sua aposta no BRICS PLUS e na ampliação do alcance do bloco. (Leia mais aqui)