TPI a caminho da irrelevância

Por PEDRO PAULO REZENDE

A irrelevância das decisões do Tribunal Penal Internacional (TPI) foi exposta pelo general Fikile Mbalula, secretário-geral do Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês), maior partido sul-africano. Em entrevista à BBC, rede de comunicação estatal do Reino Unido, ele lembrou ações criminosas promovidas por governantes do Reino Unido e dos Estados Unidos no passado recente e afirmou que a África do Sul, na próxima Cúpula do BRICS (marcada para agosto próximo), não irá executar um mandato de prisão provisória emitido pela 2ª Câmara de Pré-Julgamento da corte contra o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin:

— Se depender do ANC, Putin seria bem-vindo se chegasse amanhã na África do Sul — disse Mbalula. — Claro que vamos recebê-lo. Sabemos que temos obrigações com o Tribunal Penal Internacional, mas Putin é presidente de um país que é membro do BRICS. Quem irá prender um chefe de Estado que tem imunidade diplomática?

Em seguida, Mbalula atacou:

— Quantos crimes o seu país e os outros países invasores cometeram no Iraque e Afeganistão? Onde estão as armas de destruição em massa iraquianas citadas por Tony Blair (ex-primeiro-ministro britânico) e pelo presidente George Wayne Bush? Milhões de pessoas morreram e nada foi encontrado. Sabemos o real significado do conflito da Ucrânia e trabalhamos pela paz.

É preciso ressaltar que a decisão do TPI, tomada em 17 de março pela 2ª Câmara de Pré-Julgamento, tem caráter preliminar e não examina o mérito da questão. O órgão é formado pelos juízes Antoine Kesia-Mbe Mindua (Congo) e Rosario Salvatore Aitala (Itália) e pela juíza Tomoko Akane (Japão). Além de decretar a prisão do presidente da Rússia, a sentença também atingiu a comissária dos Direitos da Criança do país, Maria Alekseyevna Lvova-Belova.

O maior inimigo

O maior adversário da corte é o governo dos Estados Unidos da América que tentou, por todos os meios, impedir a criação do Tribunal Penal Internacional, aprovado pelo Estatuto de Roma, em 17 de julho de 1998, por 120 signatários. Somente 21 se abstiveram e sete votaram contra: China, Iraque, Israel, Iêmen, Líbia, Catar e EUA. A jurisdição universal, que afeta a soberania nacional, é considerada inaceitável por Washington, responsável por crimes contra civis e por guerras de agressão.

Embora o então presidente dos EUA, Bill Clinton, tenha assinado o estatuto em 31 de dezembro de 2000, seu sucessor, George W. Bush, revogou a firma em 2002. Logo depois, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Proteção aos Membros do Serviço Americano (ASPA, na sigla em inglês), um projeto que proibiu as autoridades norte-americanas de cooperarem com o Tribunal Penal Internacional.

Segundo o texto, o presidente dos Estados Unidos está autorizado, em caso de emergência, a usar “todos os meios necessários e apropriados para libertar cidadãos estadunidenses e de países aliados da tutela da corte”. Na Holanda, o projeto foi chamado de “lei da invasão de Haia”. Um problema da corte é de que ela só pode agir se o país do infrator ou onde o crime ocorreu for um membro do Estatuto de Roma, ou se um Estado não membro aprovar a jurisdição do TPI e quiser levar um crime à Haia.

Ameaça direta

Em 2018, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, ameaçou prender e processar juízes e outros funcionários do TPI se este processar americanos que lutaram no Afeganistão por crimes de guerra:

— Vamos impedir estes juízes e procuradores de entrarem nos Estados Unidos. Vamos aplicar sanções contra seus bens no sistema financeiro americano e vamos abrir processos contra eles em nosso Judiciário — advertiu John Bolton. — Faremos o mesmo com qualquer companhia ou Estado que ajude uma investigação do TPI contra os americanos.

Bolton acusou o tribunal internacional encarregado de julgar crimes de guerra e contra a humanidade de ser “ineficaz, irresponsável e francamente perigoso” para os Estados Unidos, Israel e outros aliados. O conselheiro de Donald Trump dirigiu uma mensagem à corte:

— Os Estados Unidos utilizarão todos os meios necessários para proteger nossos cidadãos e os de nossos aliados de julgamentos injustos por parte desta corte ilegítima — ameaçou. — Não cooperaremos com o TPI. Não daremos assistência ao TPI. Certamente, não nos juntaremos ao TPI. Deixaremos que o TPI morra por si mesmo. Se a Corte se opuser a nós, Israel ou qualquer aliado dos Estados Unidos, não vamos ficar sentados. Para nós, o TPI já está morto.

As ameaças de Bolton deixaram clara a intenção do governo americano e de outros países da Aliança Atlântica de varrer o assassinato de milhares de afegãos para debaixo do tapete. Em 2018, revelou-se uma prática comum entre as forças australianas: o batismo de sangue. Civis desarmados eram mortos para que recrutas marcassem sua estreia em combate com o primeiro abate. Também se comprovou o costume de “plantar” armas capturadas ao lado das vítimas para simular atos de resistência.

A Justiça Militar australiana comprovou 49 casos, mas há indícios de que o total é bem maior. A prática também era comum entre os paraquedistas britânicos. Filmes foram divulgados pela internet com cachorros perseguindo e atacando pessoas desarmadas.

Segurança humanitária

O conteúdo dos mandados do TPI contra as autoridades russas é sigiloso, mas alega que Putin e Lvova-Belova deportaram ilegalmente crianças ucranianas de Donbass para que fossem adotadas por cidadãos russos. Em realidade, órfãos e menores extraviados durante combates contra as forças ucranianas foram levados para áreas seguras e distantes do conflito. Reportagens dos meios de comunicação ocidentais usadas como prova mostram que o resgate por familiares era fácil: bastava um certificado legal, inclusive passaportes emitidos pela Ucrânia, para que as crianças fossem liberadas.

A Federação Russa fornece, a partir daí, livre passagem para qualquer destino solicitado pelos responsáveis ou uma nova moradia em seu território. A decisão também ignora um fato básico: a Federação Russa, desde 2016 e a exemplo dos Estados Unidos, da República Popular da China e da Ucrânia, não reconhece o Estatuto de Roma. Ou seja, está fora da jurisdição do TPI, mas este fato foi ignorado pelo 2ª Câmara de Pré-Julgamento, o que torna a decisão questionável.

Neste momento, um jornalista, Julian Assange, sofre torturas em na prisão de alta segurança de Belmarsh, localizada em Londres. É acusado de revelar crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos e por militares britânicos em território iraquiano. Não seria o caso do TPI avocar o caso para si, uma vez que o Reino Unido reconhece a autoridade da corte de Haia? É apenas um sinal de que os juízes escolhem seus casos seguindo um padrão enviesado e duplo, de acordo com a orientação da Aliança Atlântica em lugar da lei internacional.

É preciso ressaltar que o Reino Unido cumpre um mandato de busca, apreensão e extradição emitido pela segurança nacional estadunidense de acordo com o PATRIOT Act. Dentro desta regulamentação, Assange ficará incomunicável assim que tocar território norte americano, será julgado por juízes militares e não poderá escolher seu advogado. Um defensor do quadro jurídico militar será nomeado pela corte. Como podemos ver, sem nenhum respeito aos direitos humanos do jornalista, mas isto é secundário para o TPI.