O terror, a irresponsabilidade nuclear e o efeito Bustani

Por PEDRO PAULO REZENDE

A partir do dia 5 de outubro, as regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia passam a integrar a Federação Russa. A decisão de abandonar a Ucrânia foi tomada, por ampla margem, em referendo fiscalizado internacionalmente e aceita pelo presidente russo, Vladimir Putin, em documento formal firmado no dia 30 de setembro. Esta mudança traz alguns aspectos interessantes que envolvem a campanha sistemática de terror promovida por Kyiv contra os separatistas. Áreas urbanas sem qualquer interesse militar recebem bombardeios regulares, inclusive de armas sofisticadas, como foguetes guiados lançados pelo sistema M142 HIMARS (High Mobility Artillery Rocket System), uma das opções mais avançadas do arsenal dos Estados Unidos, e canhões M777 de calibre 155 mm.

A Ucrânia também emprega foguetes desenvolvidos pela União Soviética que dispersam minas em forma de pétalas. Feitas de plástico e preenchidas com explosivo acionado por pressão, causam sérios danos aos membros inferiores ao serem espalhadas pelas cidades de Donbass. A ideia era causar revolta contra a nova administração russa depois da expulsão das forças neonazistas do Azov, mas o efeito foi contrário. Acelerou o desejo da população de aderir, formalmente, à Federação Russa. Este processo implica em um agravamento do conflito. Os ataques, se houverem, serão contra território russo e a legislação do país é clara: a resposta precisa ser dura.

Desde 4 de março, quando as forças aliadas — formadas pela Federação Russa e as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk — chegaram à cidade de Energodar, a Central Nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa, com seis reatores, sofre ataques diários. A seriedade da ameaça às instalações, agora em território russo, não pode ser minimizada. Se um dos seus reatores for atingido os efeitos seriam sentidos por todo o sul e oeste da Ucrânia, incluindo as cidades de Odessa e Lviv e a região do Mar Negro. A Moldova, a Polônia e a Romênia também sofreriam danos sérios devido à radiação. A área afetada, provavelmente, chegaria à capital ucraniana, Kyiv, e ao sul de Belarus, uma tragédia maior que a de Chernobyl.

As defesas antiaéreas montadas pela Federação Russa, até o momento, conseguiram evitar os ataques de mísseis e drones, mas parte do sistema de refrigeração dos reatores e outras instalações secundárias sofreram danos leves e alguns funcionários já foram feridos por projéteis disparados por obuseiros de 155 mm fornecidos pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A Rússia entende que as ações ucranianas ferem os compromissos firmados pela Cúpula de Segurança Nuclear, realizada em Washington em 2016, onde se discutiu a ampliação do Tratado Antiterrorismo Nuclear da Organização das Nações Unidas (ONU).

Proposto pela Rússia em 1998 e aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2005, o tratado obriga governos a punir a posse ilegal de dispositivos atômicos ou materiais radioativos e garantir a segurança de instalações nucleares. Ele entrou em vigor em 2007, quando foi ratificado por Bangladesh, o 22º país a adotá-lo.

Relatório anódino

A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), foi convocada a agir pela Representação da Federação Russa junto à ONU. Ofereceram-se garantias e total transparência para que uma fiscalização completa fosse feita. Uma comissão de investigadores sob o comando do embaixador Rafael Mariano Grossi, diretor-geral da entidade, vistoriou as instalações, no primeiro dia de setembro. Não faltaram incidentes durante a visita: dois grupos de comandos ucranianos, numa tentativa desesperada para ocupar a usina, foram eliminados pelos soldados da Federação Russa e os golpes de artilharia continuaram. Além disto, as autoridades de Kyiv dificultaram o acesso da comitiva às instalações, fato reconhecido pelo diplomata ao retornar para Viena, sede da organização.

No total, Rafael Grossi permaneceu duas horas na central, tempo suficiente para constatar danos no prédio que abriga as instalações de treinamento e no teto reforçado do prédio que abriga os rejeitos nucleares (matéria prima para bombas de plutônio). Ao se retirar, anunciou que conseguira obter todas as informações que queria. Quando chegou à Viena, sede da AIEA, fez questão de agradecer a colaboração dos militares da Federação Russa e de exaltar o grau de cooperação entre os funcionários ucranianos e russos, mas dias depois, soltou um relatório anódino que não destacava a origem dos bombardeios e que exigia a neutralização das instalações e a retirada das forças que garantem a segurança do local — a única unidade militar presente é especializada em guerra nuclear, bacteriológica e química (NBC). O regime de Kyiv não foi citado.

Por coincidência, a agência divulgou, dias depois, relatório em que afirmava o risco da República Islâmica do Irã de se tornar uma potência nuclear, no momento em que o país busca reativar o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês), firmado em 2015 no formato 5 + 1 (em ordem alfabética, China, Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e Alemanha). Pelo acordo, o ocidente levantaria as sanções contra a República Islâmica em troca da redução dos índices de produção de urânio enriquecido. Em 2018, para agradar o Estado de Israel, o ex-presidente norte-americano Donald Trump retirou os Estados Unidos do tratado e impôs pesadas penalidades comerciais à Teerã, inclusive sua expulsão do SWIFT (leia mais aqui). Desde então, as autoridades iranianas lutam para que o JCPOA retorne ao seu modelo original.

Em verdade, as ações da AIEA apenas deixaram uma verdade incômoda à mostra: as agências de controle do Sistema Nações Unidas se tornaram subservientes à vontade dos Estados Unidos e não possuem nenhuma autonomia. É o que podemos chamar de “efeito Bustani”.

Integridade

Em 2002, o diplomata brasileiro José Maurício Bustani ocupava a Direção-Geral da Organização para Proibição das Armas Químicas (OPAQ), órgão que integra o sistema da ONU. Ele fora eleito para o cargo na reunião de fundação da entidade, em 1998, e acabara de ser reconduzido, por unanimidade, para mais um mandato de quatro anos. Na ocasião, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, já decidira invadir o Iraque, então governado por Saddam Hussein, sob a alegação de que o país mantinha um programa secreto de fabricação de armas de destruição em massa. Como parte de sua estratégia, lançou uma ofensiva de relações públicas que incluiu uma apresentação do então secretário de Estado, Collin Powell, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas onde mostrou fotos de pretensas instalações móveis de fabricação de armas químicas iraquianas.

A performance de Powell, general da reserva do Exército dos Estados Unidos, não foi convincente. Liderada pela França, a maioria dos integrantes do Conselho de Segurança não só questionou os dados apresentados pela delegação americana como também criticou a radicalização do discurso estadunidense. Apenas Austrália e Reino Unido se manifestaram a favor dos Estados Unidos.

Bush precisava de algo mais consistente para mobilizar a comunidade internacional contra Saddam Hussein, mas enfrentou um obstáculo inesperado: o diplomata brasileiro Maurício Bustani. Contrariando os interesses estadunidenses, a OPAQ emitiu relatório em que reafirmava que o Iraque não dispunha de armas químicas e cumpria os termos do acordo, firmado em 1991, depois da Guerra do Golfo (leia mais aqui), no qual o Iraque abriu mão do seu arsenal de armas de destruição em massa montado, aliás, com apoio da República Federal da Alemanha e dos Estados Unidos, durante o conflito de Bagdá com a República Islâmica do Irã, ocorrido entre 1980 e 1988.

Para piorar a situação, o diplomata brasileiro, em uma tentativa desesperada de evitar a guerra, buscava atrair Saddam Hussein para a OPAQ.

Canelada

A reação do governo dos Estados Unidos não foi nada sutil. Bush encarregou o subsecretário de Estado para Controle de Armas e Segurança Internacional, John Bolton, para eliminar Maurício Bustani como uma ameaça aos planos de invadir o Iraque. Era o homem certo para o trabalho sujo. Recentemente, em julho deste ano, ele reconheceu que participou de várias tentativas de golpe de Estado em entrevista à rede de televisão CNN e lamentou não ter sucesso na Venezuela.

Bolton resume todas as qualidades negativas que se pode encontrar em uma figura política. Como bom falcão, defendeu a Guerra do Vietnã, mas deu um jeitinho para escapar da convocação ao se alistar no componente aéreo da Guarda Nacional de Maryland. Alinhado com o Partido Republicano, participou dos governos de Ronald Reagan, George Howard Bush, George Wayne Bush e Ronald Reagan. Em todas suas passagens pelo serviço publico estadunidense defendeu intervenções armadas, inclusive no Iraque e no Irã.

Como responsável por impedir a proliferação de armas de destruição em massa, caberia a ele coordenar a participação norte-americana na conferência que criaria a agência das Nações Unidas para controle de armas biológicas. A reunião ocorreria em Genebra em 2001, mas para preservar as pesquisas norte-americanas na área, ele conseguiu sabotar o encontro. Contra um adversário sem escrúpulos, Bustani pouco podia fazer.

Bolton viajou para a Europa e, no encontro com Bustani, na sede da OPAC, em Haia, exigiu a renúncia do diplomata brasileiro em 24 horas dirigindo ameaças à segurança física da família do diplomata brasileiro. Também prometeu divulgar informações sobre a vida privada do diplomata — que integrava o quadro regular do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Ao contrário do que se esperava, o chanceler Celso Lafer não reagiu aos ataques norte-americanos. Por um lado, ele reconhecia que seu poder de fogo era pequeno em um jogo extremamente pesado, por outro, o então chefe de Estado do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, mostrava interesse em viabilizar a candidatura futura de Márcio Barbosa para o cargo de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Karine de Souza Silva, em seu artigo A relevância do Acórdão Bustani do Tribunal Administrativo da OIT para a consagração do princípio da autonomia das organizações internacionais lembra:

“Em 21 de março de 2002, a delegação estadunidense submeteu à vigésima oitava sessão do Conselho Executivo uma “moção de desconfiança” convidando José Maurício Bustani a informar aos Estados-partes que renunciaria o cargo até 31 de março de 2002. A moção foi rejeitada, uma vez que não alcançou a maioria de dois terços necessários para adoção de matérias substanciais. Não satisfeitos, em 22 de abril de 2002, os EUA convocaram uma Conferência Especial dos Estados-partes em cuja pauta estava a deliberação sobre a cassação do mandato do diretor-geral com efeito imediato. Os principais argumentos levantados pelos delegados estadunidenses para exigirem a deposição do brasileiro foram: falta de transparência, má-gestão, negligência, irresponsabilidade, incompetência e desmoralização do secretariado técnico.

Nesta, que foi a Primeira Conferência Especial da Organização, a moção foi aprovada com 48 votos a favor, sete contrários, 43 abstenções e duas ausências. Como se vê, o voto favorável da maioria de dois terços dos presentes necessários à aprovação da decisão foi conseguido de maneira deveras curiosa, se observado o número de abstenções e votos contrários. Mas, esse resultado foi o suficiente para demitir o Diretor-Geral da OPAQ. Essa foi a primeira vez na história que o Diretor de uma Organização Internacional foi removido do seu cargo antes de completar o seu mandato”… (Leia mais aqui)

Terrorismo

De lá para cá, nenhuma decisão das organizações internacionais ousou contrariar os interesses dos Estados Unidos. É preciso ressaltar que o uso do terrorismo não se limita a ataques a usinas nucleares. O Serviço Federal de Segurança (FSB) da Federação Russa conseguiu evitar vários ataques por parte de agentes ucranianos a jornalistas, mas não puderam impedir a explosão de uma bomba instalada sob o carro de Darya Dugina, filha do filósofo Alexander Dugin, que morreu no atentado realizado em 20 de agosto. Dugin é visto no Ocidente como uma espécie de guru do presidente Vladimir Putin, o que está longe da verdade. Sua influência junto ao Kremlin é mínima. Sua filha, no entanto, era uma estrela em ascensão.

Jornalista, filósofa e cientista política, ela editava um site sobre geopolítica era figura constante, como comentarista, nos programas de TV em Moscou. Gozava de enorme popularidade. No dia 22 de agosto, o FSB identificou a autora do ataque. Trata-se de uma agente do Serviço de Inteligência da Ucrânia, identificada como Natalia Pavlovna Vovk, de 43 anos. Foi apenas mais uma ação de terror contra civis.

Os ucranianos também minaram os portos do Mar Negro, o que dificultou a exportação de grãos para países da África, Oriente Médio e Europa. Depois de acordo mediado pela Turquia, o porto de Odessa foi reativado, mas as forças ucranianas costumam incendiar áreas de colheita como forma de retaliação à população que apoia, em sua maioria, a intervenção russa. Para isto, infiltram helicópteros equipados com mísseis incendiários.