Por PEDRO PAULO REZENDE
A próxima cúpula do BRICS Plus, na cidade russa de Kazan, dará um passo importante rumo à institucionalização do bloco. O encontro, entre os dias 24 e 28 de outubro, discutirá a ampliação do grupo, hoje com nove sócios, e a criação de mecanismos de pagamento próprios e alternativos aos existentes. O sistema atual, o Swift (sigla em inglês de Sociedade Global Interbancária de Telecomunicação Financeira), é completamente controlado pelo Ocidente que impõe sua agenda política e ideológica por meio de sanções econômicas.
Estes mecanismos punitivos não são adotados pelo BRICS que funciona de maneira informal desde a primeira cúpula, realizada em 16 de junho de 2009, na cidade de Ecaterimburgo, Rússia. Na época, o embaixador Celso Amorim ocupava o Ministério das Relações Exteriores e Luiz Inácio Lula da Silva era o presidente da República.
A informalidade do BRICS não é peculiar. O G-7 (formado pelas sete maiores economias) e o G-20 (que soma as 20 maiores economias) seguem o mesmo sistema. Estes grupos funcionam como um clube de cavalheiros onde as prioridades temáticas para as reuniões de cúpula são estabelecidas pelo país anfitrião — a partir de encontros setoriais com ministros das relações internacionais e das áreas social, econômica e de infraestrutura.
No entanto, o BRICS Plus possui um grande diferencial: o Novo Banco de Investimento, criado em 2014, hoje presidido por Dilma Rousseff. Este organismo financia obras de infraestrutura em nível global com baixos juros e nenhuma exigência de alinhamento ideológico. O G-7 e o G-20 não têm nada similar. Para o Itamaraty, a criação de uma instituição financeira oferece a musculatura necessária para o BRICS atuar como um bloco econômico formalizado e institucionalizado, a exemplo do MERCOSUL e da União Europeia, e servir de alicerce de um novo polo de poder capaz de romper a ordem unipolar que o ocidente tentou impor.
Esta posição, manifesta em todos os encontros desde a formação do Bloco, se tornou mais urgente com o uso político-ideológico de sanções econômicas e com a aceleração do processo de transformação do BRICS para o BRICS Plus.
Berço acadêmico
O ideia de um bloco formado por países gigantes com grandes recursos naturais e enormes contingentes populacionais partiu de um analista do Banco Goldman Sachs: o economista Jim O’Neil. Em 2001, ele analisou o potencial de Brasil, Rússia, Índia e China e teorizou o impacto de um possível bloco, o BRIC, formado por estas nações. Ele pensava em um papel complementar e subsidiário aos sete países mais ricos do mundo e não esperava que sua invenção evoluísse como uma alternativa ao ocidente, mas acreditava que o PIB bruto seria superior ao do G-7 em 2050.
Ele errou na previsão. Se usarmos o poder de paridade de compra (PPB) calculado pelo Banco Mundial, o BRICS, hoje, responde por 35,7% do PIB mundial, enquanto a parcela das economias do G7 diminuiu para 29%.
Em 2010, os sócios decidiram pela inclusão de um representante africano, a África do Sul entrou e o BRIC virou BRICS. No ano passado, vieram Arábia Saudita, Argentina (que declinou do convite após a chegada ao poder de Javier Milei), Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Por isto é mais adequado em termos acadêmicos adotar a denominação BRICS Plus. Os próximos candidatos são Arzeibaijão, Cazaquistão (grande produtor de petróleo e gás); Indonésia (a maior população islâmica) e Nigéria (país africano mais populoso).
Oportunidade na crise
A chegada do candidato republicano Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, em 2017, serviu para provar a falta de confiabilidade do sistema financeiro ao impor sucessivas sanções contra a Venezuela, governada por Nicolás Maduro, e Cuba (leia mais aqui). A situação se agrava em 2019, quando o presidente do Congresso venezuelano, deputado Juan Guaidó, se autoproclamou legítimo chefe de Estado do país.
Neste instante, a Casa Branca e a União Europeia determinaram o confisco das reservas monetárias e bens do governo venezuelano entregando a gestão dos ativos, inclusive 31 toneladas de ouro depositadas no Banco da Inglaterra, para o opositor de Maduro (leia mais aqui). O pacote de maldades — endossado por Austrália, Canadá e Japão — não parou por aí: o acesso ao Swift foi negado, impedindo que os dois países pagassem importações de alimentos, insumos químicos e suprimentos médicos na maior crise sanitária desde a Gripe Espanhola de 1918. Na época, o Brasil era governado por Jair Bolsonaro e o Itamaraty estava alinhado à política externa do Departamento de Estado norte-americano.
Os efeitos foram sentidos pela população venezuelana. O país sofreu uma crise migratória com 8 milhões de refugiados seguindo para países vizinhos e para a América do Norte. Cuba, acostumada aos embargos da Lei Helms Burton conseguiu se adaptar melhor. Preocupados com a situação, governos de países em desenvolvimento da África e da Ásia sondaram África do Sul, China, Índia e Federação Russa sobre mecanismos alternativos de pagamentos e a semente foi lançada em solo fértil, mas o maior catalisador para viabilizar a ideia ocorreu em fevereiro de 2022, quando o presidente russo, Vladimir Putin, interveio na guerra civil ucraniana.
Golpe de Estado
O conflito teve início em 2014 quando a região de Donbass e a Crimeia se levantaram contra o golpe de Estado de Maidan — patrocinado pelos Estados Unidos e União Europeia com o objetivo de colocar Kyiv sob o guarda-chuva da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A Crimeia decidiu, na ocasião, voltar para a Federação Russa (de onde saiu em 1955) e estava imune às represálias do governo ucraniano, mas as repúblicas de Donetsk e Lugansk sofreram os efeitos de uma política de repressão embasada, prioritariamente, no uso de tropas treinadas e equipadas pelo Ocidente na limpeza étnica dos territórios por meio da eliminação de alvos civis.
A intervenção determinada por Putin para proteger as populações russófonas da Ucrânia não ficou sem resposta. Trump, relativamente simpático à Rússia, fora substituído pelo democrata Joe Biden que concertou com seus aliados a decretação de 22.230 sanções, inclusive vetar o uso do Swift para as transações comerciais russas e confiscar cerca de US$ 300 bilhões em reservas depositadas em bancos ocidentais. O tiro saiu pela culatra. A substituição de importações de Estados Unidos, Europa e Japão promoveu um enorme crescimento na economia russa embasada na agricultura e na indústria, mas a necessidade de meios de pagamentos alternativos ficou evidente.
O Brasil defende uma moeda comum virtual para o BRICS desde o governo Dilma Rousseff, considerada indispensável para o crescimento do bloco. Este ponto dividiu as discussões internas a primeira metade do governo Bolsonaro, durante a gestão de Ernesto Araújo como ministro das Relações Exteriores. De um lado ficavam o chanceler, que queria se afastar da República Popular da China, e o ministro da Economia, Paulo Guedes; de outro, a ministra da Agricultura, Teresa Cristina. O balanço mudou com a saída de Araújo e a chegada de Carlos França, que defendia a reaproximação com o BRICS, no comando do Itamaraty.
A aliança entre França e Teresa Cristina, contudo, não conseguiu vencer Guedes, que defendia o status quo. Hoje, com o governo de Luíz Inácio Lula da Silva, o BRICS voltou a ser prioridade no exato momento em que o bloco amplia a presença em todos os continentes, principalmente entre os países em desenvolvimento que demandam a criação de uma nova ordem multipolar. Um bom exemplo: ex-possessões francesas na África se levantaram nos últimos dois anos contra o modelo adotado por ocasião do processo de descolonização, que submetia as reservas monetárias dos novos países ao domínio do Banco da República Francesa.
Neste processo, expulsaram forças militares do Ocidente, substituídas por empresas de segurança russas, como o Wagner Group. Ao mesmo tempo, se aproximaram da China para garantir uma fonte de financiamento para seus projetos de desenvolvimento, mais uma prova de que a conjuntura internacional conspira a favor da institucionalização do BRICS Plus. Um banco de desenvolvimento próprio com moeda comum e sistema de pagamentos alternativo ao Swift levarão o bloco a outro patamar em que o sistema atual, informal, será completamente inapropriado. Será preciso a criação de um mecanismo de solução de controvérsias e secretarias específicas. É questão de tempo.

