Narendra Modi, de aliado a vilão

Por PEDRO PAULO REZENDE

O governo dos Estados Unidos não esconde sua vontade de isolar a República Popular da China. A estratégia desenhada pela Casa Branca trabalha em dois níveis: o primeiro seria atrair sócios do BRICS — grupo formado inicialmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —para a esfera de influência norte-americana, o segundo estaria na ampliação da plataforma AUKUS — acordo que inclui Austrália, Reino Unido e Estados Unidos — com a adição de novos sócios.

O secretário de Estado Antony Blinken iniciou sua ofensiva ao tentar trazer a Coreia do Sul e o Japão para o que poderia ser chamado de AUKUS +. Ele nada conseguiu de concreto. Diferenças culturais causadas pela dominação colonial japonesa da Península Coreana entre os anos de 1910 e 1945, colaboraram para impedir o estreitamento das relações e uma colaboração mais efetiva entre as forças armadas dos dois países.

Como se não bastasse, Blinken também fracassou em seu propósito de causar um racha no BRICS. Escolheu a Índia como elo fraco e tentou seduzir o primeiro-ministro Narendra Modi com a perspectiva de se associar ao AUKUS +. Em um primeiro passo, acenou com a possibilidade dos serviços de inteligência de Nova Delhi participarem da Plataforma Cinco Olhos, criada a partir do acordo BRUSA (Britain-USA) formado na Segunda Guerra Mundial por Estados Unidos e Reino Unido para troca de informações estratégicas.

A Plataforma Cinco Olhos, hoje, inclui Austrália, Canadá e Nova Zelândia e, apesar de pouco conhecida, é a mais antiga aliança militar da atualidade. Cabe a ela manter a vigilância sobre o Atlântico Norte e o Pacífico. Foi extremamente ativa nos anos da Guerra Fria, quando monitorava em tempo real o posicionamento de unidades navais soviéticas, principalmente submarinos, que pudessem ameaçar Forças Tarefas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Um pouco de história

O Reino Unido e os EUA decidiram partilhar informações depois de quebrarem com sucesso os códigos alemão e japonês, respectivamente. Em 1943, o cientista Alan Turing visitou Washington. Ele lançara as bases para a moderna computação ao quebrar os segredos da máquina de criptografia alemã Enigma.

A partir de visitas bilaterais entre funcionários dos dois países o acordo BRUSA foi assinado entre o Departamento de Guerra dos Estados Unidos e a Escola Governamental de Código e Cifra (agência de inteligência e segurança britânica) para “compartilhar informações entre os dois países para apoiar as forças dos EUA na Europa, trocar pessoal e desenvolver regulamentos conjuntos para o manuseio e distribuição de material altamente sensível”, segundo o site do governo do Reino Unido.

Depois disso, o UKUSA foi assinado em 1946. O Canadá aderiu em 1949, e a Nova Zelândia e a Austrália o fizeram em 1956, formando a aliança. O Acordo não foi divulgado oficialmente, embora a sua existência fosse conhecida desde a década de 1980. Mas em 2010, os arquivos do acordo foram divulgados.

No papel, a escolha da Índia pelo Departamento de Estado norte-americano fazia sentido. Um contencioso de fronteiras na região de Galwan, na Caxemira, perturba as relações diplomáticas entre Nova Delhi e Beijing. A situação chegou às vias de fato em 2020, com choques entre militares dos dois países sem o uso de armas de fogo que causaram, segundo informações não confirmadas, mais de 40 mortes.

A sedução não funcionou

Disponibilizar informações de primeira linha sobre as intenções da República Popular da China era um grande atrativo para o governo indiano, mas a ofensiva de Blinken junto ao primeiro-ministro Narendra Modi fracassou. O BRICS virou BRICS + com a adesão de novos sócios. Hoje, além da formação original, conta com Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Isto significa o controle das rotas marítimas mais importantes entre a Ásia e a Europa, da maioria das reservas de petróleo e de produção de alimento (leia mais aqui)

Até a presença da Etiópia, país que enfrenta a ameaça de conflitos internos, traz benefícios para o bloco. A China investe pesadamente no país com a intenção de criar um centro logístico para toda a África. Neste processo, o aeroporto de Adis Abeba se transformou em um importante hub entre o Ocidente e o Oriente.

A maior prova do fracasso de Blinken está no uso da Plataforma Cinco Olhos para comprometer o governo da Índia com o assassinato do líder separatista Harmeet Singh Nijjar ocorrido em julho, na cidade canadense de Vancouver. Ele desejava a instalação do Kalistão — um Estado da etnia sikh na região do Punjab. O embaixador americano em Ottawa, David Cohen, confirmou o uso da plataforma em uma entrevista à rede de televisão CTV. O Canadá possui a maior comunidade sikh fora do território indiano. No total, cerca de 700 mil membros da etnia, famosa por seus feitos guerreiros, vivem no país.

Em 19 de setembro, o primeiro-ministro Justin Trudeau, se dirigiu ao Parlamento do seu país e afirmou que a Índia teria “ligações potenciais” com o assassinato de militantes separatistas em território canadense. Nova Delhi rejeitou as acusações. De lá para cá, os laços entre os dois países foram estremecidos, com a expulsão de diplomatas pelos dois governos.

Washington, por sua vez, afirmou que irá colocar todo o peso da Plataforma Cinco Olhos para confirmar a participação indiana na eliminação de separatistas. O mais importante é que os Estados Unidos colocaram em compasso de espera suas pretensões de ampliar o AUKUS e de rachar o BRICS. De possível aliado, Narendra Modi virou vilão.