Por PEDRO PAULO REZENDE
A unidade latino-americana está, mais uma vez, sob ataque. A ausência do presidente Javier Milei e a participação da delegação argentina, chefiada pela chanceler Diana Mondino, na reunião de cúpula do MERCOSUL, realizada em Assunção (Paraguai), deixaram claro que paira uma ameaça contra o bloco. Ela defendeu o direito das nações de fecharem acordos de livre comércio individuais fora do tratado e recusou o aumento de investimentos da organização entre outros pontos defendidos pelos chefes de Estado presentes, inclusive os presidentes do Paraguai e do Uruguai, os conservadores Santiago Peña e Luis Lacalle Pou, os únicos mandatários no continente que ainda mantêm algum diálogo com Buenos Aires.
Como ponto positivo, o bloco recebeu a adesão da Bolívia e todos os integrantes do encontro, inclusive a Argentina, manifestaram seu apoio à democracia. É preciso lembrar que o presidente boliviano, Luis Arce, sofreu uma quartelada fracassada no dia 26 de junho, comandada pelo general Juan José Zúñiga. Milei foi o único chefe de Estado sul-americano a não prestar solidariedade ao seu colega andino.
Milei critica Lula desde a campanha eleitoral argentina, mas sabe que o país depende do MERCOSUL. Por isto não coloca em prática suas propostas de se afastar do bloco. Desde o início do seu governo, seu único número favorável na economia é o superávit fiscal, no entanto, com sua política liberal radical, empurrou 60% da população para abaixo da linha de pobreza. A inflação mensal está em torno de 4,5% chegando a 4,7% em junho. A recessão pode atingir 13% do produto interno bruto até o fim do ano.
É interessante observar como a fúria de Milei atingirá a representação do seu país no Parlamento do MERCOSUL (PARLASUL). A deputada Fabiana Martín — ligada ao mandatário argentino (Partido Unión Celeste Y Blanco) — preside o organismo, que estabelece pautas comuns que orientam a ação conjunta do bloco nas áreas diplomáticas, de comércio exterior e social. A primeira tentativa não deu certo. O grupo aprovou uma moção contra Israel, apesar do esforço dela para bloqueá-la.
Enquanto se discutia a ampliação das ações do MERCOSUL em Assunção, Milei participava de um encontro sem qualquer relevância, a Conferência da Ação Política Conservadora (CPAC), organizada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) na cidade catarinense de Balneário Camburiú. Ao lado do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o mandatário argentino não atacou diretamente o chefe de Estado brasileiro Luíz Inácio Lula da Silva, mas proferiu suas cantilenas de costume contra os governos progressistas.
Em relação à CPAC, o happening da direita hidrófoba atraiu o público de sempre: bolsonaristas que vivem em uma realidade paralela e políticos da oposição brasileira. Só teve uma figura internacional importante além de Milei, o ministro da Justiça e Segurança Pública de El Salvador, Gustavo Villatoro.
Sabotagem
A unidade latino-americana sempre foi sabotada por suas elites. A União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) é o maior exemplo disto. Participei da cobertura de formação do organismo, em 23 de maio de 2008, que pretendia ser o embrião de um bloco capaz de criar um mecanismo de defesa contra ameaças externas para o subcontinente. Na época, os governos progressistas eram norma na região. O clima era festivo e a única nota discordante foi a delegação colombiana. O país era governado por Alvaro Uribe, alinhado aos Estados Unidos, e impôs uma série de condições para se agregar ao projeto, que não sobreviveu à maré conservadora que tomou o continente durante a gestão de Donald Trump como presidente estadunidense.
Vários países anunciaram sua saída definitiva quando chegou a vez do chefe de Estado da Venezuela, Nicolás Maduro, assumir a presidência do bloco: Colômbia, em agosto de 2018; Equador (onde fica a sede da organização), em março de 2019; Argentina, Brasil, Chile e Paraguai em abril do mesmo ano, e o Uruguai, em março de 2020. Em 2019, com o objetivo de contrapor-se à UNASUL, presidentes de 8 países da América do Sul criaram o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL) que não alcançou nenhuma expressão.
Tentativa de reconstrução
Hoje, a UNASUL encontra-se paralisada, sem presidente ou secretário-geral. Ao assumir a chefia de Estado do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva propôs o reerguimento do bloco. Junto com a Argentina, então governada pelo presidente Alberto Fernandez, retornaram à organização — classificada por ambos, em uma reunião realizada em Brasília em 30 de maio do ano passado, como mecanismo possível de cooperação entre os países da América do Sul. Na ocasião, o Itamaraty também anunciou o retorno do país à Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), outro bloco rejeitado por Jair Bolsonaro. O encontro trouxe mais de dez líderes dos países da região, mas não teve resultados positivos.
Lula procurava restabelecer a cooperação em áreas como saúde, mudança do clima, defesa, combate aos ilícitos transnacionais, infraestrutura e energia. Participam da reunião, os presidentes Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela). A única ausência em nível presidencial foi a do Peru. Dina Boluarte estava impossibilitada de comparecer por questões constitucionais.
Apesar de propor o fortalecimento da UNASUL, Lula disse que não havia ideias preconcebidas sobre o desenho institucional que poderia ser adotado. Na época, ele destacou as potencialidades da América do Sul na transição energética, produção de alimentos, desenvolvimento industrial, promoção da paz e como grande mercado de consumo. (Leia mais aqui)
Danos permanentes
Em verdade, a tentativa de reconstruir a UNASUL está fadada ao fracasso. A maré conservadora conseguiu destruir a confiança dos países do subcontinente em mecanismos coletivos de defesa e de cooperação. Na área econômica a situação é mais simples. A Comunidade Andina de Nações, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e o MERCOSUL mantêm amplo intercâmbio comercial. Por isto o empenho dos movimentos conservadores em quebrar a vitalidade da cooperação comercial na região.
Este quadro foi discutido no encontro do Fórum de São Paulo, realizado em Tegucigalpa, Honduras, no dia primeiro deste mês (leia mais aqui). A organização reúne agremiações políticas progressistas de todas as Américas e Caribe. Serviu de inspiração para que Steve Bannon, marqueteiro do ex-presidente norte-americano Donald Trump, lançasse uma contraparte conservadora, a Conferência da Ação Política Conservadora (CPAC). Comandada na América Latina por Eduardo Bolsonaro, iniciativa ainda não se tornou expressiva.
A Unasul não foi a única ocasião perdida. O Parlamento Latino-americano e do Caribe (Parlatino) mostra como boas ideias perdem-se ao longo do tempo. Criado em 1964, a partir de uma proposta do deputado brasileiro Nelson Carneiro (eleito pelo extinto estado da Guanabara), o grupo existiu de forma não institucional até 1986. Nesta fase, foi importante para a defesa dos direitos humanos e como ferramenta de resistência contra os regimes autoritários impostos à região por meio de golpes militares. Infelizmente, à medida em que se formalizou, perdeu impacto.
Durante um breve período, teve sede física em São Paulo. O então governador Orestes Quércia (PMDB) iniciou a construção de um prédio (projetado por Oscar Niemeyer) para abrigar a entidade no Memorial da América Latina. Inaugurado em julho de 1993 pelo governador Luís Fleury, a instalação funcionava por meio de um acordo firmado com o Parlatino em que o governo paulista financiava também a manutenção do edifício.
Tudo funcionou até 2007, quando o governador José Serra decidiu afastar o Parlatino daquele prédio sob a alegação de que o local e os recursos para a sua manutenção deveriam ser fornecidos pelo Governo Federal, pois se tratava de um organismo internacional. Apesar do empenho de alguns parlamentares brasileiros, a sede foi transferida para a Cidade do Panamá, Panamá, em dezembro de 2007.
O pouco empenho das autoridades brasileiras em manter a sede de um organismo regional de integração no Brasil demonstra a mudança de foco da referência regional da política externa brasileira que, de latino-americana, passou a sul-americana a partir dos anos 90 do século passado. Hoje, a instituição existe, mas a presença e a participação brasileiras são meramente protocolares.
Para finalizar, a defesa do MERCOSUL é indispensável para a vitalidade do subcontinente e para a criação de um mundo multipolar. A região é grande produtora de matérias-primas importantes para a economia tecnológica, como lítio e nióbio, e de alimentos e esta importância precisa ser refletida em sua participação na produção da riqueza global.

