Loucura alemã

Por Pedro Paulo Rezende

Os gastos para renovar as Forças Armadas da República Federal da Alemanha alcançarão um nível recorde em 2024. O investimento corresponderá a 2% do PIB, a partir do próximo exercício fiscal, conforme a nova lei orçamentária. O governo de Olaf Scholz destinou 51,8 bilhões de euros em investimentos militares, quase dois bilhões a mais que neste ano. A este valor, serão acrescidos 19,2 bilhões de euros (100 bilhões de reais) do Fundo Especial para o Bundeswehr (Exército Federal) — criado em 2022 e dotado de 100 bilhões de euros (522 bilhões de reais).

O grande problema é que estes recursos serão empregados contra uma ameaça fantasma: a Federação Russa. O presidente Vladimir Putin já deixou claro que não tem interesse em um conflito com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e que seus objetivos no conflito com a Ucrânia são limitados às repúblicas russófonas da região de Donbass e à península da Crimeia.

Enquanto isto, a economia germânica passa por uma de suas mais sérias crises. Segundo a Destatis, a agência de estatísticas da República Federal da Alemanha, os consumidores enfrentam uma séria inflação para os padrões europeus, da ordem de 4,5% em setembro. A este quadro, soma-se a perda de competitividade da economia somada a um quadro recessivo. Entre os meses de julho e agosto, o mercado registrou uma queda de 2,4% na produção do setor de construção em relação ao mês anterior, um declínio de 6,6% na produção de energia e uma queda de 2,3% na fabricação de máquinas e equipamentos.

Com a destruição dos gasodutos Nord Stream I e Nord Stream II, que transportavam combustível russo para a Alemanha, os custos de energia explodiram e empresas migraram para os Estados Unidos em busca de tarifas mais justas e melhoria de competitividade.

Entre outras medidas para enfrentar a diminuição da oferta de combustível, o governo de Olaf Scholz reativou minas de linhita, um minério extremamente poluente, e usinas de geração de energia a carvão, o que contraria os compromissos alemães para reduzir as emissões de carbono que causam o aquecimento global e pioram a qualidade do ar respirado no país. É um preço muito alto a se pagar para a melhoria do aparato militar que poderia ser melhor usado se aplicado em energias renováveis e outras medidas que melhorassem a situação da população do país.

Ameaça irreal

Este pacote, decidido no calor da intervenção da Federação Russa na Guerra de Donbass, foi tomado sob a imposição do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, junto aos países integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sob o pretexto de que era necessário conter uma possível expansão de Moscou rumo ao ocidente. As ações, no entanto, só ocorreram depois de inúmeros alertas da diplomacia russa em dezembro de 2021, na cidade alemã de Munique, de que a Ucrânia deveria aceitar uma condição de neutralidade (não aderir à OTAN) e respeitar os acordos de Minsk, firmados entre Kyiv e as repúblicas de Donetsk e Lugansk, estabelecendo a autonomia dos territórios e pondo um fim nos ataques à população civil.

Na visão da Rússia, a expansão da OTAN rumo a suas fronteiras era um claro risco de segurança ao mesmo tempo em que Moscou ressaltava a necessidade de se conseguir uma saída negociada para a questão de Donbass, alvo de uma guerra étnica promovida pelo governo ucraniano com o uso de milícias de caráter neonazista, como os batalhões Azov e Tornado. Ou seja, os objetivos do presidente russo eram claros e delimitados e não incluíam um confronto direto com a Aliança Atlântica.

Apesar disto, os países da OTAN decidiram apoiar o governo da Ucrânia com treinamento e armas, praticamente esvaziando as reservas de equipamento militar da Alemanha e de outros países europeus. A decisão de Olaf Scholz de ampliar os gastos em defesa além de ser estrategicamente desnecessária recebe críticas por outro motivo: boa parte destes investimentos será feito no estrangeiro em lugar de gerar empregos no país.

Exportação de empregos

Em outubro, o Ministério Federal da Defesa da Alemanha lançou o projeto “Escudo do Céu Europeu”, que se baseia nos sistemas antiaéreos alemães Iris-T, da Diehl, para defesa de curto alcance; Patriot PAC-3MSE, fabricado pela Raytheon dos Estados Unidos, e Arrow 3, do consórcio Israel Aerospace Industries-Boeing. Somadas, as duas compras no estrangeiro chegam a mais de US$ 5 bilhões. O contrato foi firmado apesar das limitações apresentadas no conflito com a Rússia pelas baterias de Patriot cedidas à Ucrânia e responsáveis pela defesa de Kyiv e Kharkiv.

Outro projeto muito contestado pelos sindicatos alemães foi a aquisição de 35 caças furtivos Lockheed-Martin F-35A Lightning II norte-americanos ao preço de US$ 8 bilhões. O acordo inclui um pacote abrangente de motores, equipamento de missão específico, peças sobressalentes e de reposição, suporte técnico e logístico, treinamento e armamento. As organizações de classe preferiam a aquisição de mais caças Eurofighter Typhoon Tranche 3 pela Força Aérea alemã (Luftwaffe).

O governo alegou que a compra seria para cobrir um perfil específico que já é atendido pelo F-35A: penetrar o espaço aéreo inimigo transportando bombas nucleares táticas B61 norte-americanas. Os Eurofighter necessitariam de uma adaptação cara e de um processo de homologação longo que não atenderia os prazos exíguos devido a desativação dos caças-bombardeiros Panavia Tornado, adquiridos na década de 1970.

Como pedra angular para a interoperabilidade com a OTAN, o F-35 seria o único caça de 5ª geração disponível para fortalecer a capacidade operacional da Alemanha com aliados. E ofereceria melhorias de conectividade com o restante da frota europeia do modelo, que pode chegar a 550 aviões.

Estes investimentos militares fora do país sem uma justificativa razoável — a ameaça russa não é palpável — já começaram a gerar protestos. Neste ano, a produção industrial da Alemanha encolheu seis meses seguidos, segundo consecutivo, informou a Destatis, a agência de estatísticas alemã, em uma indicação de que o setor continua sob forte pressão em um quadro de recessão. Colaboram para isto as altas taxas de juros e a queda do consumo devido à inflação.

Aliado interesseiro

Com a imposição de sanções contra a Federação Russa, instigadas pela Casa Branca, o que reduziu as exportações alemãs, as empresas alemãs começaram a migrar para os Estados Unidos. Hoje cerca de 5,6 mil delas investem no mercado estadunidense, segundo dados da Câmara Americana de Comércio na Alemanha (AmCham Germany). Isto representa um volume de investimento de quase US$ 650 bilhões (dados de setembro de 2022). E não são apenas grandes grupos empresariais como Siemens, Volkswagen e Linde que desejam fortalecer sua presença nos EUA — em parte até mesmo construindo instalações de produção completamente novas por lá.

Este quadro desfavorável à Alemanha é reforçado por subsídios como a Lei de Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), um programa multibilionário de subsídios liderado pelo presidente Joe Biden, de aproximadamente, US$ 430 bilhões, US$ 370 bilhões destinados à promoção de tecnologias de baixo carbono (equipamentos, sistemas e recursos que têm como objetivo reduzir a emissão de gases de efeito de estufa) e segurança energética.

Esses subsídios e abatimentos fiscais estão vinculados à condição de que as empresas que se beneficiam deles usem produtos americanos ou produzam diretamente nos Estados Unidos Do ponto de vista americano, produtos primários de países com os quais os EUA têm um acordo de livre comércio — como México e Canadá — também estão incluídos.

Como resultado dos planos do governo estadunidense no âmbito do IRA, já existem atrasos e ameaças de paralisação de fábricas de baterias para carros elétricos na Alemanha — é por exemplo, o caso da Tesla, em Grünheide, perto de Berlim, e da empresa sueca Northvolt, que tinha planos de construir uma fábrica em Heide, no estado alemão de Schleswig-Holstein, e agora provavelmente vai investir primeiro em território americano.

Em suma: investir em equipamento militar em um quadro recessivo e inflacionário não é sensato, principalmente quando o maior aliado, os Estados Unidos, além de lucrar com a exportação de energia ainda se fortalece roubando empresas e empregos. Para piorar, criar um inimigo imaginário nunca foi uma boa política. O resultado sempre gerou conflitos, o que não beneficiaria a Europa.