Por PEDRO PAULO REZENDE
As Forças Armadas Brasileiras deveriam absorver as lições do conflito na Ucrânia, invadida por forças da Federação Russa em fevereiro de 2022. Ele validou vários preceitos doutrinários da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), como o conceito de vigilância, controle e comando do campo de batalha em todos os níveis (C4ISTAR). Em compensação, colocou em xeque várias doutrinas mantidas pela aliança ocidental.
O maior exemplo está no uso maciço de munições vagantes (drones kamikazes) em ações de ataque estratégicas e táticas. Simples e baratos, servem para atacar centros de comando na retaguarda, para fogo de contrabateria e para eliminar carros de combate e casamatas. Apesar de amplamente usados pelas Forças de Defesa de Israel, o emprego destas armas foi subestimado na Europa e nos Estados Unidos.
O Geran é um bom exemplo. Variante do Shahed iraniano fabricada sob licença (o modelo russo emprega navegação por GLONASS em lugar de inercial) custa cerca de US$ 20 mil e consegue atingir alvos na capital ucraniana de maneira efetiva. Para tentar interceptá-los, a antiaérea emprega uma variedade de equipamentos ocidentais caros, que disparam mísseis que podem custar até US$ 1 milhão, como os empregados pelo sistema NASAMS, o que é economicamente inviável. Isto explica o interesse de países da OTAN pelo EMBRAER EMB-314N Super Tucano (versão OTAN). Ele seria um meio barato de interceptar este tipo de equipamento.
Na linha de frente, o Switchblade de fabricação estadunidense se mostrou pouco efetivo, ao contrário do ZALA Lancet 3 russo. Ao custo unitário de US$ 10 mil, ele é empregado para eliminar blindados, bolsões de infantaria e peças de artilharia. O uso de armas rebocadas pelos ucranianos se tornou inviável. Depois de poucos tiros, a bateria é localizada e neutralizada por uma munição vagante. Armas consideradas decisivas, como os obuseiros M777 e FH70, ambos de 155 mm, capazes de disparar projéteis inteligentes Excalibur, guiados por GPS, foram destruídos sem dificuldades e passaram a ser empregados como recursos descartáveis.
Os canhões autopropulsados e lançadores de foguete também se mostraram vulneráveis aos drones kamikazes quando insistem em permanecer em posição depois dos primeiros disparos. De uma maneira geral, a artilharia precisa repensar suas táticas de emprego. O Exército Brasileiro está no caminho certo e emitiu um requerimento para aquisição (RFP) para a aquisição de um obuseiro de alta mobilidade sobre rodas para substituir as peças rebocadas M114 (de fabricação coreana) — adquiridas na década de 1970.
Os requisitos estabelecem peças de artilharia autopropulsadas de 155/52 mm montadas em caminhões qualquer terreno. O equipamento precisa atingir velocidade superior a 100 km/h em estradas asfaltadas, possuir alcance de tiro superior a 40 km com munição tradicional e oferecer flexibilidade na seleção da base motriz (chassis).
Proteção em todos os níveis
A experiência na Ucrânia ressalta a necessidade de proteção ativa para carros de combate, viaturas blindadas de transporte de tropas e canhões autopropulsados. No início do conflito, os mísseis antitanque Javelin, de fabricação norte-americana, se mostraram bastante efetivos. O perfil de ataque, por cima do alvo, atingia o ponto mais vulnerável dos alvos. O maior problema estava em que a maioria das munições disparadas ultrapassara o prazo de validade, o que reduzia a efetividade dos disparos. A melhor maneira de contrabalançar a ameaça seria o emprego de sistemas similares ao Afghanit, russo, ou Trophy, israelense, capazes de interceptar drones e mísseis guiados pelo alto.
Neste quadro de alta tecnologia é importante mostrar o valor de um recurso barato: o quadricóptero de plástico. Empregado por todas as unidades de combate, russas ou ucranianas, serve para reconhecimento e, equipados com pequenas granadas, ataques. Sua presença se tornou obrigatória.
Guerra aérea
As Forças Aeroespaciais da Rússia (VKS) receberam muitas críticas por limitarem sua ação à linha de frente. Deixaram a tarefa de supressão das bases da força aérea inimiga para mísseis de cruzeiro, balísticos e supersônicos, mas isto tem uma explicação: a Ucrânia e a Federação Russa são os únicos países da Europa que possuem uma defesa antiaérea escalonada em todos os níveis, do míssil lançado de ombro, como o IGLA, aos S-300 antibalísticos. No campo do combate aéreo, todas as vitórias foram obtidas em cenário além do campo de visão (BVR), o que coloca em xeque a tese de que a ultramanobrabilidade seria importante atualmente. Neste ponto, é importante ressaltar o primeiro abate de um caça Sukhoi Su-27, de quarta geração, por um avião furtivo Sukhoi Su-57, de quinta geração. O míssil ar-ar R-37 mostrou efetividade em raio de ação superior a 200 km.
As forças de defesa antiaéreas ucranianas buscam proteção em centros urbanos. Por um lado, isto aumenta a sobrevivência do equipamento. Por outro, amplia o risco de danos colaterais contra a população civil. É importante ressaltar que é grande o número de registros de mísseis antiaéreos de origem ocidental e soviética que caem dentro das cidades depois de não conseguirem interceptar seus alvos. Na linha de frente, os Stingers, mísseis lançados de ombro que colocaram em xeque as forças de helicópteros soviéticas no Afeganistão, mostraram sua idade com sucessivas falhas. Mais uma vez, a exemplo do teatro de operações sírio, o uso de mísseis antitanques contra helicópteros mostrou sua validade.
A Federação Russa, na linha de frente, contrabalanceou a ameaça antiaérea com o uso de bombas guiadas.
Helicópteros de combate
O comandante da Primeira Brigada de Aviação do exército Britânico, general de brigada Mark Ackril, fechou o primeiro dia da Conferência Internacional sobre Helicópteros Militares, realizada em Londres entre 21 e 23 de fevereiro. Ele esteve no terreno na Ucrânia, visitou o Aeródromo de Gostomel e colocou pontos importantes:
a) A Ucrânia recebeu alerta antecipado da OTAN sobre uma possível ofensiva russa na direção de Kyiv. Sabia o eixo de ataque e a data prevista;
b) A Ucrânia era o único país da Europa, além da Federação Russa, a operar uma defesa antiaérea em nível completo, do míssil lançado de ombro ao míssil de defesa estratégico, como o S-300;
c) A Ucrânia deslocou para a região uma força de 10 mil homens equipados com artilharia pesada. Apesar disto, os 400 homens da Força Aerotransportada conseguiram superar as defesas antiaéreas ucranianas graças ao uso de sistemas avançados de contramedidas eletrônicas que equipavam os helicópteros. A tropa desembarcou, teve poucas baixas e conseguiu manter sua posição até ser substituída por unidades blindadas vindas de Belarus 72 horas depois;
d) A maioria da força atacante conseguiu superar as defesas com poucas baixas. Apenas cinco helicópteros foram perdidos: três Kamov Ka-52 e dois Mil Mi-17.
Poderíamos acrescentar que, no momento, os helicópteros de ataque conseguiram repelir a contraofensiva ucraniana ao destruir carros de combate Leopard 2A de variados modelos, de fabricação alemã, e viaturas de combate de infantaria M2 Bradley, manufaturados nos Estados Unidos. Atuam impunes distante da ameaça antiaérea com o emprego de mísseis com alcance entre cinco e vinte quilômetros. Isto valida a ideia de se armar helicópteros de transporte equipados com telêmetros laser, radares e armas guiadas acopladas ao capacete (HMD).
Guerra eletrônica
A aliança ocidental apostou pesado no conceito C4ISTAR — sigla em inglês para Comando, Controle, Comunicações, Inteligência, Vigilância, Aquisição de alvos e Reconhecimento (Command, Control, Communications, Computer, Intelligence, Surveillance, Target Acquisition e Reconnaissance). A gama de inteligência oferecida à Ucrânia incluiu vigilância por satélite; aviões de alerta antecipado; aeronaves remotamente pilotadas de baixa, média e alta altitude e drones operados diretamente por pequenas unidades de tamanho pelotão à baixa altitude. As informações eram entregues aos militares ucranianos em tempo real e a segurança de comunicações era garantida por meio de datalink e Rádio Designado por Software.
A Rússia contrabalançou com o uso pesado de interferência eletrônica que afetou a comunicação inimiga e, inclusive, a eficiência de bombas e foguetes guiados por GPS disparados por sistemas HIMARS e mísseis de cruzeiro de fabricação britânica. O grau de sucesso alcança 90% segundo fontes independentes. O emprego de aeronaves remotamente pilotadas ucranianas, principalmente o Bayraktar de fabricação turca, se provou inviável neste cenário.
Isto nos leva a examinar a realidade dos programas de aquisição das Forças Armadas brasileiras.
Graças a recursos concedidos pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) não faltam projetos de drones e quadricópteros desenvolvidos por pequenas empresas. Neste momento, há cerca de vinte programas em curso sem qualquer requerimento oficial. Como se não bastasse, grandes players do mercado de defesa, como a AKAER, querem uma fatia de um mercado que ainda não se definiu. O Ministério da Defesa em conjunto com as forças poderia elencar prioridades, como as munições vagantes, e, a partir daí, procurar consolidar as propostas dentro das necessidades brasileiras.
No campo C4ISTAR, ainda cometemos erros básicos. Precisamos determinar um mínimo de comunabilidade e um datalink capaz de integrar e compartilhar informações entre unidades da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Restrições orçamentárias determinam a continuidade do uso de material legado e a compra de material importado compatível, como rádios Harris, em lugar de se investir em sistemas de Rádio Designado por Software desenvolvidos no Brasil e prontos para produção.
Devemos estabelecer os requisitos para satélites de observação, para a artilharia antiaérea e para guerra eletrônica a partir da realidade do campo de batalha. Para finalizar, poderíamos seguir o exemplo histórico do Japão que, na Restauração Meiji, deu um salto do Feudalismo para a melhor tecnologia da Revolução Industrial. A guerra na Ucrânia nos abriu um vislumbre para o futuro. Sabemos o que funciona e o que não entregou o prometido. Ignorar as lições seria o maior dos erros.

