Por PEDRO PAULO REZENDE
Os Estados Unidos e o Reino Unido declararam guerra comercial ao decretarem medidas restritivas para a exportação de semicondutores contra a República Popular da China. É apenas mais um capítulo na tentativa do governo norte-americano no sentido de tentar preservar a ordem global unipolar vigente desde a queda da União Soviética em 1992. No início de outubro, o Departamento de Comércio aplicou novos controles de exportação para impedir o acesso de empresas chinesas a chips de computação avançados, para diminuir a capacidade delas de desenvolver e manter supercomputadores e fabricar semicondutores.
Não foi o primeiro ataque. Em agosto, o presidente norte-americano, Joe Biden, determinou que a NVidea e a AMD, produtoras dos chips mais modernos do mercado, encerrassem suas relações com fabricantes chineses sob a justificativa de que a continuidade dos negócios facilitaria o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial desenvolvidos para as forças armadas de Beijing, mas os ataques não pararam por aí. O governo britânico alegou questões de segurança nacional ao ordenar, no dia 17 de novembro, que uma empresa de propriedade chinesa, a Nexperia, com sede em Xangai, desfizesse a aquisição da Newport Wafer Fab , maior fabricante de chips do Reino Unido.
O secretário de Estado de Negócios, Energia e Estratégia Industrial do Reino Unido, Grant Shapps instruiu a companhia a vender “pelo menos 86%” de sua participação. O movimento ilustra a preocupação crescente no Ocidente sobre as ligações chinesas com empresas de tecnologias e infraestrutura. É preciso ressaltar que se não fosse o aporte de capital da Nexperia, a Newport Wafer Faber, com sede no País de Gales, entraria em colapso com a perda de 500 postos de trabalho extremamente qualificados. O acordo foi firmado há cerca de um ano e a decisão do governo britânico pegou os executivos chineses desprevenidos.
É preciso lembrar que a ação britânica ocorreu três dias depois do encontro, em Bali (Indonésia), dos presidentes da China, Xi Jinping, e dos Estados Unidos, Joe Biden, à margem do G20, grupo que reúne as vinte maiores economias do globo. Na reunião, o mandatário norte-americano, em tom conciliatório, afirmou que “não precisa haver uma nova guerra fria.” No entanto, as palavras não se refletiram na prática. Este foi o primeiro encontro pessoal entre os líderes das duas nações desde que Biden assumiu o governo, em 2021.
Bola da vez
O novo conceito estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) definido em 2010 ampliou o escopo e o raio de atuação da aliança — não mais restrito ao teatro europeu, como ocorre hoje no conflito na Ucrânia e no Indo-pacífico. Uma interpretação literal deste documento abre caminho para o bloco poder intervir em qualquer parte do mundo, inclusive no Atlântico Sul, para defender os interesses dos países-membros em áreas como agressões ao meio ambiente, antiterrorismo, ações humanitárias, tráfico de drogas, ameaças à democracia, entre outras. Dentro desta filosofia, Washington e Londres se uniram para isolar a China. O acordo AUKUS com a Austrália, tem este objetivo — o tratado visa a construção de seis submarinos nucleares para a Marinha Australiana para se contrapor à expansão da Marinha do Exército Popular de Libertação Nacional (leia mais aqui).
Em reação a esta tentativa de cerco, o Grande Congresso do Povo, Poder Legislativo da República Popular da China, respondeu com a eleição de Xi Jinping para um terceiro mandato, consolidando-o como o líder chinês mais influente desde Mao Zedong.
Em verdade, a política externa do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se perdeu em um emaranhado de decisões equivocadas que deixaram o mundo mais próximo de um conflito nuclear. Cometeu um erro de cálculo ao ignorar as demandas da Federação Russa contra a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção à Ucrânia, o que resultou em uma operação especial militar para desmilitarizar o país iniciada em fevereiro deste ano (leia mais aqui). Ao mesmo tempo, permitiu que as relações diplomáticas com Beijing descessem ao seu patamar mais baixo ao permitir que figuras chaves do Partido Democrata sugerissem sutilmente o endosso a uma possível independência da República da China (Taiwan), o que significaria o fim da política de apenas “uma China” estabelecida desde 1949.
Naquele ano, as forças do Kuomitang (Partido Nacionalista), comandadas por Chiang Kai-Shek e apoiadas pelo Ocidente, se refugiaram no Arquipélago de Taiwan, depois de derrotadas e expulsas do continente pelo Exército Popular de Libertação Nacional, braço armado do Partido Comunista Chinês, liderado por Mao Zedong. Até a Resolução 2.758 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, aprovada em 25 de outubro de 1971, o governo de Taipei era reconhecido como o único representante legítimo do povo chinês. Isto mudou e Beijing assumiu o papel.
Lobby pesado
Como se não bastassem os sinais ambíguos de Biden, os ruídos nas comunicações entre Beijing e Washington tornaram-se ainda piores quando a presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos (equivalente à Câmara dos Deputados, no Brasil), Nancy Pelosi, do Partido Democrata, resolveu visitar oficialmente a capital da República da China, Taipé, e se encontrar com a mandatária do regime da ilha de Taiwan, Tsai Ing-Wen, do Partido Democrático Progressista. A resposta da República Popular da China foi a realização de exercícios militares que mostraram, claramente, a impossibilidade da ilha conseguir resistir a um ataque do Exército de Libertação Popular.
O interesse de Pelosi por Taiwan é, basicamente, econômico. Os empresários da ilha contribuem fartamente para o financiamento das campanhas políticas da presidente da Câmara dos Representantes. As constituições da República da China e da República Popular da China reconhecem que a ilha e o continente integram o mesmo país. Os dois lados do Estreito de Formosa também compartilham boa parte das reivindicações territoriais, com a denúncia de todos os tratados injustos impostos pelas potências ocidentais e o Japão.
Nas salas de aula taiwanesas, os mapas do país incluem áreas que se tornaram independentes, como a República da Mongólia, ou que pertencem à Índia, ao Vietnã e à Tailândia. Perto delas, as demandas de Beijing são humildes, resumindo-se ao arquipélago Diaoyu/Senkaku, que os Estados Unidos mantiveram em posse do Japão ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e recifes disputados com as Filipinas e Malásia.
Para Biden, a competição com Beijing como o maior desafio de política externa de sua gestão. Em seu primeiro discurso ao Congresso, ele prometeu manter uma presença militar norte-americana forte no Indo-Pacífico e fortalecer o desenvolvimento tecnológico dos EUA. Estas posições agressivas foram reforçadas em entrevista do secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, ao programa 60 Minutes da CBS News, um patrimônio cultural estadunidense.
Às vésperas de um encontro do G7 em Londres, ao ser indagado se Washington ruma para um confronto militar com Beijing, ele acusou, depois de dizer que um conflito não serviria aos interesses de nenhum dos envolvidos:
— O que testemunhamos ao longo dos últimos anos é a China agindo mais agressivamente em casa e mais agressivamente no exterior. Isto é um fato.
As afirmações foram feitas uma semana depois que Beijing decidiu duplicar o volume de importação de soja americana, uma medida vista pela comunidade internacional como um passo no sentido de apaziguar as relações entre os dois países (e que prejudicou claramente os agricultores brasileiros). O negócio era parte do acordo abrangente do governo do ex-presidente Donald Trump com Beijing, que incluiu mudanças regulatórias em tecnologia agrícola e compromissos de comprar cerca de 200 bilhões de dólares de exportações de produtos estadunidenses ao longo de dois anos.
Manobras marítimas
Durante a entrevista ao 60 Minutes, o secretário de Estado norte-americano não citou o aumento das atividades da 7ª Frota na Zona Marítima Econômica Exclusiva chinesa nos últimos dois meses. Também nada falou sobre as manobras navais organizadas pela iniciativa QUAD, que envolve Estados Unidos, Japão, Austrália e Nova Zelândia, explicitamente desenhadas para conter uma pretensa expansão de Beijing.
Simultaneamente, Biden enviou mensagens indiretas ao governo taiwanês, dando garantias à presidente Tsai Ing-Wen de que os Estados Unidos estariam prontos a intervir a favor da ilha em uma possível invasão pela República Popular da China. Trata-se de uma promessa vazia. Nos últimos quatro anos, todos os exercícios simulados realizados pelos militares norte-americanos envolvendo uma possível intervenção dos Estados Unidos em um conflito entre Beijing e Taipei terminaram com a derrota acachapante dos estadunidenses.
Em resposta, a Marinha do Exército de Libertação Popular enviou uma força tarefa de seis navios para atravessar o estreito de Miyako (entre Taiwan e Japão), numa clara demonstração de poder naval. O grupo incluía o Shandong, primeiro porta-aviões construído integralmente na China, e o Nanchang, cabeça de série da Classe Tipo 55 de cruzadores. A Força Aérea do Exército Popular de Libertação também ampliou o volume de patrulhas de aviões de combate na área adjacente à Zona de Defesa Aérea de Taipei.
Para finalizar, o presidente Xi Jinping encabeçou a cerimônia de incorporação de três novos navios de combate de grande capacidade: o submarino lançador de mísseis balísticos Changzheng (Tipo 094A); o cruzador Dalian (Tipo 055) e o porta-helicópteros de assalto anfíbio Hainan (Tipo 075) — cabeça de série de quatro embarcações só inferior em tamanho e capacidade aos porta-helicópteros da Classe América, os mais modernos do arsenal estadunidense.
Ligações perigosas
O site Politico, um dos mais prestigiosos meios analíticos dos Estados Unidos, noticiou, em novembro do ano passado, as ligações da WestExec Advisors, empresa de consultoria e lobby fundada em 2017 pelo atual secretário de Estado, com as empresas do complexo industrial-militar norte-americano. Intitulada The secretive consulting firm that’s become Biden’s Cabinet in waiting (leia o original aqui) a reportagem mostra como a firma tratava os interesses dos grandes fabricantes de armas nas discussões dos orçamentos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos no Congresso.
É óbvio que sob a influência da WestExec Advisors, o Departamento de Estado veja um confronto comercial e político entre os Estados Unidos e a República Popular da China como inevitável. Seriam duas visões de mundo divergentes, uma (pelo menos em teoria) democrática, a ocidental, e a outra autoritária. A solução passaria por ampliar a pressão militar, comercial e diplomática contra Beijing. O principal problema é a falta de uma alternativa concreta à política de incentivos econômicos proposta pelos chineses.
A República Popular da China criou uma proposta abrangente ao ressuscitar a Rota da Seda, que ligava o Oriente ao Ocidente desde a antiguidade. A iniciativa “Um cinturão e uma estrada” lançada por Xi Jinping beneficia dezenas de países de quatro continentes, inclusive da Europa. Os investimentos na África prometem grandes frutos para o agronegócio do continente.
Para desacreditar este esforço, Washington parte para a acusação de que Beijing quer exportar seus valores autoritários para outras regiões, fere os direitos humanos de minorias, como os uigures em Xinjiang, e que se recusa a respeitar compromissos assumidos com o Reino Unido antes de reincorporar Hong Kong.
As acusações de que os uigures são submetidos a trabalho escravo na indústria do algodão não se sustentam. O cultivo é completamente mecanizado. Os centros de reeducação destinados a radicais islâmicos fundamentalistas, apresentados pelo Ocidente como prisões inexpugnáveis, possuem muros baixos e baixa segurança. As condições em Guantánamo e dezenas de outras prisões mantidas pelos Estados Unidos em território estrangeiro são comprovadamente, piores, com casos comprovados de tortura. É preciso lembrar ainda que, durante a administração britânica, Hong Kong nunca teve uma eleição.
As ligações perigosas de Biden e Blinken também se manifestaram na escolha de Katherine Tai como negociadora principal dos Estados Unidos para assuntos comerciais. Nascida em Connecticut de pais chineses, ela tem profundas ligações com Taiwan e se orgulha de ter defendido as posições americanas contra a China em painéis da Organização Mundial do Comércio. Desta forma fica mais fácil explicar a visita a Taipei, em 15 de abril, de uma comitiva informal formada sob as bênçãos da Casa Branca.
Estímulo separatista
O grupo era constituído do ex-senador democrata Chris Dodd, que exerceu mandato entre 1981 e 2011, e por dois ex-secretários de Estado: James Steinberg, que serviu no governo Barack Obama, e Richard Armitage, ligado ao ex-presidente George W. Bush. Durante sua passagem em Taiwan, conversou com o ministro de Negócios Estrangeiros, Joseph Wu, e a presidente Tsai Ing-wen. Os encontros discutiram a segurança da ilha diante das possíveis ameaças da República Popular da China.
Biden manteve o esforço rearmamentista iniciado pelo seu antecessor, Donald Trump, a partir de uma solicitação da presidente Tsai Ing-wen. Eleita pelo Partido Progressista Democrático (PPD), que defende a independência de fato da ilha, ela modernizou os caças F-16C/D ao padrão F-16V e adquiriu 500 mísseis antinavio Harpoon e SLAM-LR. O pacote custou US$ 4,8 bilhões. Além disto, foi aprovada a construção em estaleiros taiwaneses de oito submarines convencionais com equipamentos eletrônicos norte-americanos.
O governo de Beijing acusou o governo dos Estados Unidos de interferência nos negócios internos do país. O porta-voz do escritório do Conselho de Estado para Negócios de Taiwan, Ma Xiaoguang, foi claro:
— Não abandonamos a hipótese do uso da força se for necessário e rejeitamos todas as interferências externas que favorecem os poucos separatistas. Definitivamente, não miramos nossos compatriotas na ilha.
Foi uma clara resposta a Biden. As constituições da República da China, nome oficial de Taiwan, e da República Popular da China reconhecem que a ilha e o continente integram o mesmo país, possuem interesses iguais (leia mais aqui) e isto não vai mudar.
