Por Pedro Paulo Rezende
O governo de Israel determinou a terraplenagem de uma área no deserto do Sinai pouco antes de anunciar a ofensiva final contra Rafah. A área, especulam os especialistas políticos israelenses, serviria para construir uma cidade de tendas para “abrigar” os sobreviventes da ação militar. Toda a Faixa de Gaza seria limpa de palestinos e estaria pronta para receber empreendimentos imobiliários e colonos judeus, como propõe o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, líder do Partido Sionismo Religioso. Da população atual, de 2,3 milhões, apenas 100 mil (200 mil na melhor das hipóteses) seriam autorizados a permanecer. O resto “receberia incentivos” para se estabelecer em outros lugares. É importante ressaltar que a plataforma continental contígua ao território palestino é rica em petróleo e gás.
Smotrich é o autor de um projeto de lei que incorpora também a Cisjordânia e que propõe um estado de apartheid para os palestinos. Eles não teriam direitos políticos, não poderiam se manifestar, ter imóveis, ou escolher representantes. Caso não aceitassem o status de subcidadão — com as vantagens de poderem alugar as casas e áreas de cultivo que antes eram deles e de conseguir trabalho — poderiam optar pelo recebimento de verbas para se estabelecer em outro país. O plano, obviamente, contraria a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), de 14 de maio de 1948, que dividiu o Mandato da Palestina em dois Estados, um árabe e o outro judeu.
Nos primeiros dias da invasão de Gaza, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin “Bibi” Netanyahu, recomendou que a população do território seguisse para o sul rumo às cidades de Khan Younis e Rafah que serviriam como abrigos humanitários. Cerca de 1,7 milhão de palestinos cumpriram as recomendações, mas, apesar disto, sofreram bombardeios da Força Aérea de Israel. O uso indiscriminado do poder aéreo criou um efeito colateral danoso para os soldados israelenses: os guerrilheiros do Hamas usam as ruínas como esconderijos e abrigos para atacar os invasores e 10 mil baixas lotam hospitais da região de Telavive, um terço delas fatais.
Obviamente, foi uma decisão militar equivocada. Eu conheço a indústria bélica de Israel e o país tem tecnologia suficiente para ataques de precisão sem destruição maciça da infraestrutura urbana. O Hamas não possui armamento antiaéreo e o uso intensivo de aeronaves remotamente pilotadas (ARPs) e de drones de pequeno porte seriam mais que suficientes para dar suporte à ofensiva por terra sem causar danos colaterais à população civil. Desta forma, também se minimizaria as baixas militares e se capitalizaria o apoio de parte dos moradores que rejeita o domínio de uma organização terrorista.
Genocídio é genocídio
Este quadro foi uma das razões para o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, comparar a limpeza étnica em Gaza, promovida por Netanyahu, ao projeto de Adolf Hitler de erradicar os judeus. A declaração ocorreu depois da cúpula da Organização da Unidade Africana (OUA) em Adis Abeba, capital da Etiópia. É preciso ressaltar que ele não defendeu o Hamas, grupo terrorista que atacou o sul de Israel, a partir da Faixa de Gaza, no dia 7 de outubro de 2023, nem classificou as mortes de palestinos como holocausto. Ou seja, o presidente brasileiro não minimizou o direito de defesa do Estado judeu, não desrespeitou as 1.280 vítimas assassinadas pelos extremistas e nem maculou a memória dos 6 milhões de judeus exterminados pela Alemanha nazista.
Lula recebeu informações frescas da situação de Gaza, território administrado pela facção terrorista Hamas, quando esteve no Egito, pouco antes da cúpula da OUA. Ele foi colocado a par da situação pelo presidente Abdul Fattah Al-Sisi e pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. Os números são estarrecedores: há 1,9 milhão de refugiados em Rafah, centro urbano na fronteira egípcia, e os sistemas de saneamento básico e de distribuição de água entraram em colapso. Além disto, faltam alimentos. Até o momento, a ofensiva israelense matou 30 mil civis palestinos, dois terços deles crianças e mulheres. Setenta mil receberam ferimentos ou mutilações e 10 mil estão desaparecidos.
Amadorismo diplomático
A resposta de Israel foi completamente desproporcional. O embaixador do Brasil foi convocado pelo ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, ligado à colonização ilegal da Cisjordânia, para ouvir uma reprimenda em hebraico no Yad Vashem (Museu do Holocausto) em Jerusalém. O chanceler cometeu três gafes ao mesmo tempo: a convocação e a reprimenda devem ser em local reservado e o diplomata não pode ser alvo de qualquer constrangimento.
O atual diretor do Yad Vashem chama-se Dani Dayan, um dos líderes do movimento de colonização ilegal da Cisjordânia. Ele se tornou subcelebridade no Brasil ao ser indicado por Netanyahu, em 2015, para a embaixada no Brasil. A presidente Dilma Rousseff negou o agrément depois de saber que a organização liderada pelo candidato estava por trás de uma tragédia: um estudante palestino foi cercado por militantes que o obrigaram a ingerir gasolina para depois incendiá-lo.
O chanceler da época, Avigdor Lieberman, classificou o Brasil de “anão diplomático” e o cargo de embaixador ficou vago, o que é típico de uma chancelaria tomada de assalto por amadores. Bibi Netanyahu, desde que assumiu o governo, substituiu o pessoal de carreira por líderes ligados à colonização das áreas palestinas. Ao declarar o presidente Lula como persona non grata, Katz apenas refletiu a falta de profissionalismo da diplomacia israelense.
A resposta brasileira, dirigida pelo embaixador e ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, foi exemplar:
— Quem está isolado é Israel.
Coincidência ou não, pouco depois da manifestação de Amorim, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, maior aliado do Estado judeu, entrou com um projeto de resolução na Assembleia Geral das Nações Unidas para impedir os planos israelenses de invadir Rafah. Havia uma especulação na imprensa nacional, tradicionalmente a favor de Telavive, de que a posição de Lula se refletiria negativamente na reunião dos chanceleres do G20 — grupo formado pelas 20 maiores economias globais que está sob a presidência temporária do Brasil. A expectativa não se confirmou. O chanceler Mauro Vieira cumpriu uma agenda movimentada ao longo do encontro e os países se alinharam com a proposta de um cessar-fogo.
Massacre premeditado
Bombardear a população civil de Gaza é a marca registrada do Estado judeu desde que a direita, com Ariel Sharon, assumiu o governo. Em 2008, seria fácil invadir a Faixa de Gaza e eliminar o Hamas, grupo terrorista fundamentalista islâmico avesso a um acordo de paz, mas a ofensiva terrestre foi adiada ao longo dos anos por medo de baixas excessivas entre as Forças de Defesa de Israel. Enquanto isto, o Hamas ampliava a estrutura subterrânea que herdou da ocupação israelense, inclusive, segundo o general e ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Barak, um centro de operações localizado debaixo do hospital Al-Shifa.
O esforço da direita israelense de usar o Hamas como contraponto à Autoridade Palestina — controlada pelo Fatah, laico e defensor de um acordo de paz — foi bem sucedido. Hoje, o grupo político, reconhecido internacionalmente como representante legítimo da população da Cisjordânia e de Gaza, conta com apenas 30% de apoio. A estratégia montada pelo Mossad de radicalizar a resistência como método de legitimar as ações criminosas de Israel deu certo. Quem vai pagar o preço será a população.
Foto: UNICEF/Hassan Islyeh

