As rotas seguras do BRICS

Por PEDRO PAULO REZENDE

Os rebeldes Houthi do Iêmen intensificaram seus ataques ao tráfego marítimo que se destina a Israel no Mar Vermelho como uma forma de apoio ao Hamas, grupo palestino radical que se opõe à existência de um Estado judeu na região da Palestina. Os ataques, com drones e mísseis de baixo custo, forçaram algumas das maiores companhias de carga e petrolíferas a suspender o trânsito pelo Canal de Suez, uma das rotas comerciais marítimas mais movimentadas do mundo, o que pode dar um choque na economia global.

Para combater a ameaça, os Estados Unidos formaram uma força tarefa com países europeus para escoltar as embarcações civis. Alguns sucessos foram obtidos com o uso de sistemas extremamente sofisticados e caros. Em um dos episódios, uma fragata francesa usou um míssil que custa 5 milhões de euros contra um drone que vale 10 mil dólares, apesar disto, cerca de uma dezenas de embarcações receberam impactos diretos causando prejuízos graves.

Não dá para minimizar a capacidade dos Houthis, um grupo xiita que impôs graves perdas a uma coalizão montada pela Arábia Saudita e, praticamente, garantiu a derrota do governo iemenita bancado pelas potências ocidentais. Há uma suspeita, bem fundamentada, de que o grupo, ameaçado de limpeza étnica, recebeu armas, tecnologia e treinamento do Irã para resistir. Mostrou criatividade e competência durante os combates contra a aliança montada pelas monarquias do Golfo Pérsico.

É neste quadro que aparece a necessidade de rotas seguras para o comércio marítimo internacional e elas estão sob o controle de países do BRICS, grupo formado inicialmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — ampliado com a adesão da Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. (Leia mais aqui)

A rota do Ártico

O aquecimento global transformou o Ártico em uma região de grande atrativo. Este processo foi detectado pela Marinha da Federação Russa na primeira década do século 21. A passagem norte, que só era navegável sem o uso de navios quebra-gelos durante os meses de verão, passou a ficar aberta durante todo o ano. Em termos de transporte de cargas, trata-se de um impacto importante. Pelo canal de Suez, um navio porta-contenedores leva trinta dias para cobrir a distância de 19.550 quilômetros entre Xangai e Rotterdam. Usando a rota do nordeste, que costeia a Rússia, a distância cai para 15.793 km e três semanas de viagem.

Em função desta vantagem competitiva, o governo russo aprovou um plano, no valor de US$ 29 bilhões, para melhorar a infraestrutura costeira da passagem do nordeste. A China é a maior interessada, mas o novo caminho também favorece os portos do Japão, como Yokohama, e das Coreias do Sul e do Norte.

Ao descobrir o impacto do aquecimento global no Oceano Ártico, Moscou encaminhou um alerta ao Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês). Paralelamente, o governo decidiu ampliar os levantamentos sobre recursos minerais na plataforma continental conforme previsto pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). A medida não fere a legislação internacional, uma vez que, ao contrário da Antártida, o Oceano Ártico pode ser explorado economicamente.

O primeiro passo na área diplomática foi resolver uma disputa com a Noruega, que perdurava por 40 anos. Os dois países firmaram um acordo dividindo salomonicamente uma área de 175 mil km² do Mar de Barents, uma superfície equivalente à metade do território do estado de Mato Grosso do Sul. Criou-se, de fato, uma zona de cooperação econômica ao norte da Península de Kola.

O tratado foi firmado, no dia 15 de setembro de 2010, na cidade russa de Murmansk pelo então presidente russo, Dmitry Medvedev, e por Jens Stoltenberg que ocupava o cargo de primeiro-ministro da Noruega — hoje, é o atual secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A disputa teve origem na década de 1970 na exploração dos recursos pesqueiros, mas levantamentos posteriores revelaram que o Ártico concentra 13% dos depósitos de petróleo remanescentes e 30% das reservas de gás mundiais, além de nódulos polimetálicos que incluem minerais raros e preciosos.

Tecnicamente, outros quatro países possuem interesses legítimos sobre a região: Canadá, Dinamarca, Estados Unidos (não-signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar) e Islândia. A maior fatia pertence à Rússia, que também domina as rotas entre os países atlânticos e mediterrâneos e a Ásia. Como benefício adicional, a rota polar permite reduzir a distância entre a Europa e a Ásia com um grande incremento no aspecto de segurança. O tráfego pelo Canal de Suez, além da atual ameaça dos Houthis, também é ameaçado por piratas somalis.

Reflexos no Brasil

Apesar do desmonte de empresas brasileiras promovido pela Operação Lava-Jato, o Brasil ainda detém tecnologia de levantamento e exploração de recursos petrolíferos, mas ainda não testadas em ambiente polar. Em 2014, o então vice-premiê Dmitry Rogozin, encarregado do setor de defesa e aeroespacial na Rússia, esteve no Brasil. Começou seu percurso pelo Rio de Janeiro, onde conheceu as instalações do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e os programas da Odebrecht de exploração de petróleo em águas profundas. De lá, seguiu para Brasília para se encontrar com o vice-presidente, Michel Temer, e o ministro da Defesa, Celso Amorim. Depois, foi para São José dos Campos para visitar as instalações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) da AVIBRAS e da MECTRON.

Na época, a imprensa deu pouca importância à visita ao Rio de Janeiro e preferiu enfatizar a negativa da Embraer de agendar uma visita para as autoridades russas a suas instalações. Rogozin estava sob sanção dos Estados Unidos e a empresa brasileira temia se indispor com o governo americano. No entanto, o vice-premiê ficou extremamente impressionado com a expertise brasileira na exploração da plataforma continental brasileira. Segundo uma fonte da chancelaria russa, entrevistada por mim na época, uma de suas prioridades era conhecer a tecnologia nacional ligada ao Pré-Sal.

Ao que tudo indica um consenso pacífico já foi forjado entre os países signatários da CNUDM interessados em explorar os recursos árticos. Resta saber qual será a reação estadunidense no futuro. O presidente Joe Biden já fez importantes concessões à exploração de petróleo no Ártico (leia mais aqui), apesar de posições bem definidas no combate ao aquecimento global e de retornar ao Acordo de Paris, e não tentará impor dificuldades pra o uso da rota do norte.

A velha rota das Índias criada pelos portugueses no século 16 (e dominada pela África do Sul) ainda é uma alternativa segura ao Canal de Suez, mas agrega milhagem na ligação entre a Ásia e a Europa. Neste sentido, o Ártico é vantajoso. Tecnicamente, a expansão do BRICS também ampliou o controle do bloco sobre o tráfego marítimo entre o Golfo Pérsico, a Ásia e a Europa (pelo Canal de Suez), o que amplia a capacidade de influenciar os destinos do comércio global. A partir do fim do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, as ferrovias russas deverão se somar às novas linhas criadas pela Nova Rota da Seda, iniciativa da República Popular da China, que atravessam países que fizeram parte da ex-União Soviética, o que dará ao BRICS uma enorme vantagem competitiva em termos logísticos.

Reação americana

Com o domínio de vias seguras entre a Ásia e a Europa, como a rota do norte, a expansão do BRICS é questão de tempo e não há como o Ocidente se opor a ela. No entanto, os Estados Unidos preparam, à revelia da comunidade internacional um pacote para reivindicar 1 milhão de quilômetros quadrados de território marítimo, metade dele localizado no Ártico. É uma área equivalente ao estado de Mato Grosso.

A chamada Plataforma Continental Estendida (ECS, na sigla em inglês) abrange cerca de um milhão de quilômetros quadrados, predominantemente a oeste, no Ártico, e no mar de Bering, uma área de crescente importância estratégica entre os oceanos Ártico e Pacifico, onde o Canadá e a Rússia também têm reivindicações. Também há áreas reivindicadas no Atlântico, a leste, e no Golfo do México, no Caribe. A área reivindicada contém 50 minerais estratégicos, incluindo lítio e telúrio, e 16 elementos de terras raras. O problema é que a ação é unilateral e as pretensões estadunidenses avançam sobre zonas econômicas exclusivas já delimitadas e garantidas pelas Nações Unidas, como a da Rússia e a do Canadá.