A volta do pragmatismo

Por PEDRO PAULO REZENDE

A indicação do embaixador Mauro Vieira para o Ministério das Relações Exteriores trouxe boas novas ao Itamaraty. Diplomata brilhante ocupou cargos importantes ao longo da carreira, que culminou com a ascensão à chancelaria durante o governo de Dilma Rousseff. Comandou missões de prestígio em Washington, Buenos Aires e junto à Missão Permanente na Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, até ser nomeado para a Embaixada do Brasil em Zagreb (Croácia), um posto menor, por Ernesto Araújo, que chefiou a pasta entre 1º de janeiro de 2019 e 29 de março de 2021.

Discípulo do autodenominado filósofo Olavo de Carvalho, Araújo impôs ao Itamaraty, durante sua gestão, uma visão extremamente ideológica, conservadora, pró-ocidental e atrelada a os interesses dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que promovia uma completa quebra de hierarquia ao promover diplomatas inexperientes a cargos de chefia (veja mais aqui). Por último, revogou a regra que impedia a nomeação de embaixadores fora dos quadros do Ministério das Relações Exteriores, estabelecida na segunda gestão de Celso Amorim.

Troca de comando

Recentemente, o Brasil participou de dois eventos importantes que marcam a passagem de comando da diplomacia brasileira do governo de Jair Bolsonaro para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva: o encontro do G20, grupo formado pelas vinte maiores economias mundiais, em Bali (Indonésia) e a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27) no balneário egípcio de Sharm El-Sheik.

O ministro das Relações Exteriores da atual administração, chanceler Carlos França encabeçou as duas delegações, mas sua participação foi completamente esvaziada pela presença de Lula na COP27. Desta forma se encerrou um dos piores momentos da diplomacia brasileira que perdeu protagonismo nos últimos quatro anos. Foi uma situação embaraçosa para o atual chanceler, que trabalhou duro para gerenciar a crise deixada pela conturbada passagem de Ernesto Araújo no Itamaraty.

Araújo integrava o que passará para a história como a ala ideológica ao lado de Filipe Martins, assessor da Presidência da República para Assuntos Internacionais e amigo dos três filhos mais velhos de Jair Bolsonaro (Flávio, Carlos e Eduardo). Sua agenda causou danos à balança comercial com o distanciamento do Brasil do nosso maior comprador, a República Popular da China, a desarticulação do MERCOSUL e da União das Nações Sulamericanas (UNASUL), e o afastamento do país de seus compromissos contra o aquecimento global. Atritos frequentes com a ala pragmática do governo, comandada pela ministra da Agricultura Tereza Cristina, determinaram a queda do chanceler e a ascensão de Carlos França que nomeou um diplomata experiente, Fernando Simas Magalhães, para a Secretaria Geral.

O protagonismo de Lula

A COP27 possui um formato interessante. Ao lado de representações governamentais, agrega representantes da sociedade civil que possuem interesse na agenda ambiental. Esta participação paralela transforma o evento em um grande happening onde organizações não-governamentais podem influenciar países diretamente por meio de painéis científicos e políticos. A participação de Lula na COP27 atraiu o interesse das sete economias mais importantes, o chamado G7. Ele já conversou com os enviados dos Estados Unidos, John Kerry, e da República Popular da China, Xie Zhenhua, e garantiu o retorno do país à Agenda Climática Global.

É um passo importante. A resposta da União Europeia à Operação Especial da Federação Russa na Ucrânia, que determinou um embargo ao gás e ao petróleo russos, implica no maior uso de combustíveis fósseis altamente poluentes, como a linhita, um tipo de carvão com propriedades extremamente danosas ao meio-ambiente. O presidente eleito também recebeu de cinco governadores de estados da Amazônia Legal uma carta que propõe uma aliança com o governo federal para a preservação da floresta.

O retorno de Lula coincide com a tentativa do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de estabelecer uma ordem unipolar por meio de alinhamento político e econômico. A Estratégia Nacional de Segurança, divulgada pelo governo norte-americano no dia 12 de outubro, praticamente declara uma guerra fria contra a República Popular da China e à Federação Russa.

Esta visão vai ao encontro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Criada para combater a ascensão do socialismo, a entidade perdeu boa parte de sua razão de ser com a desintegração da União das Repúblicas Socialista Soviéticas em 1992. Com base nesta crise existencial, o bloco passou a intervir fora de sua área original de influência, com a derrubada de governos no Oriente Médio e a realização de missões no Extremo Oriente em desafio aos interesses chineses.

O novo conceito estratégico da Aliança Atlântica definido em 2010 ampliou o escopo e o raio de atuação da aliança — não mais restrito ao teatro europeu, como ocorre hoje no conflito na Ucrânia e no Indo-pacífico. Uma interpretação literal desse conceito indica que a OTAN passaria a poder intervir em qualquer parte do mundo, inclusive no Atlântico Sul, para defender os interesses dos países-membros em áreas como agressões ao meio ambiente, antiterrorismo, ações humanitárias, tráfico de drogas, ameaças à democracia, entre outras. O presidente eleito pelo Brasil, por sua vez, é um defensor do multilateralismo e deu carta branca ao embaixador Celso Amorim, que ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores durante seus dois mandatos anteriores (2003-2010).

A doutrina Amorim

Durante sua gestão no Itamaraty, ele executou uma política embasada nas relações Sul-Sul e multilateral. Participou ativamente da criação da União das Nações Sulamericanas UNASUL), defendeu a entrada da Venezuela no MERCOSUL (bloco formado por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai) e a institucionalização do BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Também enfatizou uma visão de defesa continental unificada e íntegra embasada no Conselho de Segurança da UNASUL.

Um de seus sucessos foi costurar, junto com a Turquia, um acordo de controle do material físsil produzido pela República Islâmica do Irã. As negociações foram conduzidas a pedido do então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que encaminhou uma carta ao presidente Lula. Surpreendentemente, a então secretária de Estado, Hillary Clinton, classificou a ação brasileira como intromissão indevida e o tratado foi esquecido (leia mais aqui).

Este protagonismo foi desacelerado durante a gestão de Dilma Rousseff na Presidência da República e praticamente eliminado nos dois anos em que Michel Temer ocupou o Planalto. Com a chegada do bolsonarismo, o Brasil saiu da UNASUL; tratou os sócios do MERCOSUL como concorrentes; reconheceu o autonomeado deputado Juan Guaidó como presidente da Venezuela (seguindo o ex-presidente dos EUA, Donald Trump) em detrimento do chefe de Estado legitimamente eleito, Nikolas Maduro, e desacelerou sua participação no BRICS. Atualmente, apenas a política contra o governo venezuelano permanece em vigor.

Futuro

Com base em informações da equipe de transição podemos traçar algumas políticas do futuro governo Lula no campo das relações exteriores. A primeira delas é que o Brasil não aderirá a qualquer forma de unilateralismo, como deseja o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. O Itamaraty irá defender a institucionalização do BRICS com a criação de uma secretaria-geral e outros órgãos que formalizem o bloco. Desta maneira, seria possível ampliar o quadro de integrantes de uma maneira estruturada. O MRE defenderia a adesão de Arábia Saudita, Argentina, Egito, Irã e Turquia como um mecanismo capaz de conter e de contrapor o esforço dos Estados Unidos de impor a ordem unipolar com alinhamento comercial automático.

A condição brasileira de membro da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) será reativada e a organização ganhará novo sopro de vida em todos os seus mecanismos, principalmente o Conselho de Segurança. Outro ponto importante está na valorização do MERCOSUL e a sua integração por meio de relações bilaterais com outros blocos importantes, como a União Europeia, a Aliança para o Pacífico e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). No âmbito econômico, o novo governo buscará novos mecanismos de intercâmbio comercial alternativos ao SWIFT. Os mecanismos financeiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a exportação de produtos industriais e de serviços, criados durante o regime militar, serão retomados com base pragmática.

O Brasil também deseja ocupar espaços perdidos na relação política e econômica com a África, atuar de maneira mais ativa na Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) e ampliar mercados junto à Ásia. Os compromissos de preservação do meio-ambiente serão respeitados e ampliados, mas não haverá qualquer iniciativa de relativizar a soberania nacional na Amazônia, como a proposta de cooperação com a OTAN e os Estados Unidos desenhada pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, defende.

No âmbito interno, o Itamaraty será reprofissionalizado com a revogação de atos que permitiram a participação de não diplomatas na administração do Ministério das Relações Exteriores. Os embaixadores que não integram os quadros do Itamaraty indicados por Bolsonaro não terão sua nomeação renovada. De uma maneira geral são medidas extremamente positivas que levarão o Brasil de volta ao caminho traçado por Azeredo da Silveira no governo de Ernesto Geisel. A diplomacia nacional, mais uma vez, merecerá o respeito global.

Foto de Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil