A plataforma afundou

Por Pedro Paulo Rezende

A terceira edição de Cúpula da Plataforma da Crimeia tinha como objetivo ser uma demonstração firme de apoio de dezenas de países à ideia de reincorporação da península à Ucrânia. O resultado, pífio, mostrou que a iniciativa do presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelenski naufragou. No papel, 63 países participaram do encontro, realizado em 23 de agosto, um número comemorado pelo chanceler Dmytro Kuleba.

No entanto, a conferência atraiu poucos chefes de Estado ou de Governo. Apenas os presidentes da Bósnia-Herzegovina, Željko Komšić; Hungria, Katalin Novák; Lituânia, Gitanas Nausėda, e Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e os primeiros-ministros da Finlândia, Petteri Orpo; e da Moldova, Dorin Recean, compareceram. Os outros enviaram pessoal de segundo ou terceiro escalão, o que é uma prova de desprestígio. Destacaram-se por sua ausência os principais financiadores do governo da Ucrânia: Alemanha, Estados Unidos, França e Polônia.

No próximo dia 24 de outubro será realizada a Segunda Cúpula Parlamentar da Plataforma da Crimeia na cidade de Praga, mas há poucas possibilidades de sucesso para o encontro. O quadro atual da Guerra com a Rússia é extremamente desfavorável à Ucrânia. As forças de Moscou conseguiram conter a badalada contraofensiva prometida por Kyiv aos aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O objetivo da operação seria romper o cinturão de províncias de Donbass, formadas em sua maioria por russófonos, e se espraiar pela Crimeia. Os ganhos iniciais foram desprezíveis com perdas excessivas da ordem de 300 mil ucranianos mortos ou feridos.

Apesar disto, não faltaram palavras de ordem na Cúpula da Plataforma da Crimeia. O chanceler Dmytro Kuleba garantiu:

— A Crimeia é nossa e não desistiremos enquanto não retornarmos.

Palavras vãs: pouco depois do evento, Bulgária, Hungria e Polônia manifestaram seu desejo de cessar o fornecimento de armas para o regime de Kyiv, que enfrenta uma intervenção militar da Federação Russa desde fevereiro de 2022.

Fracasso anunciado

A Plataforma da Crimeia foi criada pelo presidente ucraniano em 2021 para coordenar ações contra o que ele chama de ocupação russa da península. A coordenação ficou a cargo do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia que desenhou os princípios básicos do novo formato, incluindo a importância de garantir a eficácia das sanções contra a Rússia e o trabalho na área de proteção dos direitos humanos.

Inicialmente, a Plataforma da Crimeia seguiria o modelo da Plataforma para Donbass, criada pela Organização de Segurança e Cooperação da Europa (OSCE) para minimizar os efeitos colaterais contra a população civil das repúblicas separatistas — causados, diga-se de passagem, pela ação descontrolada de milícias neonazistas da Ucrânia, principalmente do Batalhão Azov. Seria um mecanismo para diminuir atritos e a violação de direitos humanos. Hoje, ela é apresentada como uma maneira de criar, concentrar e controlar sanções mais efetivas contra a Rússia para expulsá-la da península.

Uma das alegações ucranianas ao criar a iniciativa diplomática era a defesa dos grupos étnicos minoritários na Crimeia, principalmente a etnia tatar. A maior prova de que a ideia é pouco realística está no empenho desta comunidade em formar batalhões para participar do conflito ao lado da Rússia. Outro grupo importante, os cossacos, também se alinhou às forças de Moscou. A Plataforma sobre a Crimeia não tem nenhum conceito concreto. O formato atual não implica na adoção de qualquer ação significativa e não passa de uma medida de relações públicas.

A verdade é que a Rússia transformou a península em um canteiro de obras e investiu pesadamente em infraestrutura para beneficiar os grupos étnicos minoritários com moradia digna e saneamento básico. As represálias promovidas pelo governo ucraniano desde 2015 apenas ampliaram o ressentimento da população contra Kyiv. Houve cortes de energia elétrica e de água, medidas fortemente condenadas pela sociedade internacional, resolvidos parcialmente com a construção de uma ponte entre a Crimeia e o resto do território — que também serve para passar cabos de força e uma adutora. Com a reconquista das cinco regiões de Donbass, que integraram a Rússia até 2022, a situação do abastecimento se resolveu.

Limpeza étnica

Ao contrário da era soviética, quando o regime comunista realizou intervenções por divergências ideológicas na Hungria e na Checoslováquia, a Federação Russa deslocou tropas para fora de suas fronteiras a pedido de governos estrangeiros, como na Síria, ou para evitar processos de limpeza étnica, a exemplo da invasão da Ossétia do Sul e da Abecásia. A reincorporação da Crimeia se enquadra na segunda categoria.

O atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, quando ocupava a Vice-Presidência, recebeu do então chefe de Estado norte-americano, Barack Obama, a incumbência de coordenar junto à Europa o apoio internacional para diminuir a influência russa na Ucrânia. Para isto, junto com a União Europeia, financiou o Setor de Direita (grupo ultranacionalista) para comandar o processo de derrubada do presidente Viktor Yanukovych, em 2014. O movimento, batizado de Revolução de Maidan, se embasava em princípios neonazistas propostos pelo líder nacionalista Stepan Bandera, que apoiou os invasores nazistas na Segunda Guerra Mundial. Episódios racistas resultaram em ataques à população russo-étnica, o que levou a população da região de Donbass a se levantar contra o governo ucraniano.

A Crimeia, de maioria populacional russa, foi incorporada à Ucrânia em 1954 por decisão do Politburo (o conselho do Partido Comunista da União Soviética), presidido por Nikita Kruschev. Dentro do regime comunista, a questão étnica vinha em segundo plano. O principal motivo era facilitar a administração da região em função da proximidade com Kiev. No período, ninguém podia adivinhar que a segunda potência militar e econômica iria se esfacelar em um processo que resultaria em conflitos étnicos.

A península abrigava grandes contingentes militares russos em função da Frota do Mar Negro, sediada em Sebastopol desde o século 18. As bases garantem o flanco sul da Rússia e a proteção de portos fundamentais para a economia do país. A Ucrânia, durante o processo de independência, reconheceu os interesses estratégicos de Moscou. Por meio de um acordo de segurança, arrendou as bases navais da província por um prazo de 50 anos.

Com o movimento de Maidan, a polícia ucraniana começou a agir contra lideranças de origem russa e da etnia tatar. Em resposta, a população local formava unidades de autodefesa. Para evitar o surgimento de um conflito armado, afinal de contas os ursos cuidam de seus filhotes, os 10 mil homens das forças de proteção da Frota Russa do Mar Negro atuaram preventivamente e ocuparam pontos estratégicos. A ação evitou mais um foco de guerra civil, a exemplo do que ocorreu em Donetsk e Luhansk, onde 10 mil pessoas morreram, a maioria civis.

Protegida pelas forças da Federação Russa, a população e se posicionou a favor da secessão com a Ucrânia e à reunificação com a Rússia por meio do voto com 96,8% de aprovação em um plebiscito. A medida foi mal aceita pelos Estados Unidos e a União Europeia, interessados em diminuir a área de influência russa no Mar Negro e retirar de Moscou toda influência que mantém no Oriente Médio.

Foto: Marina de Ialta, Agência Anadolu